O cancro e a diabetes têm registado um aumento de prevalência em todo o mundo, havendo evidência epidemiológica de que os doentes diabéticos apresentem um aumento significativo de risco para determinadas neoplasias malignas, o que não parece ocorrer no carcinoma pulmonar1,2, embora uma meta‐análise de estudos observacionais, recentemente publicada, coloque a hipótese de a diabetes mellitus (DM), de forma independente, e especialmente nas mulheres, posa também aumentar o risco de cancro do pulmão3.
Por sua vez, determinados fármacos utilizados no controlo da hiperglicemia têm sido relacionados com maior ou menor risco para alguns tipos de cancro, nomeadamente no que se refere ao cancro do pulmão, os diabéticos medicados com metformina4–7 ou tiazolidinedionas4,8,9 apresentam uma menor probabilidade de o virem a desenvolver – o que não é consensual10 –, apontando‐se que aqueles que vêm a padecer dessa neoplasia possam apresentar um fenótipo mais agressivo da sua doença maligna quando se encontram sob terapêutica com metformina4.
No cancro do pulmão, os fatores de prognóstico têm sido exaustivamente estudados11,12, reconhecendo‐se como clássicos o estádio anatómico do tumor, o performance status (PS) do doente e o subtipo histológico da neoplasia, sendo ainda considerados relevantes o género do doente, a sua idade, o tipo de terapêutica instituída e tantos outros parâmetros clínicos e biológicos nos quais se incluem, mais recentemente, algumas caraterísticas genéticas e moleculares do tumor13,14.
Têm sido levantadas dúvidas acerca do papel da diabetes no prognóstico e na mortalidade do cancro do pulmão, havendo trabalhos cujos resultados levam a conclusões contraditórias no que se refere a essas questões, as quais, até à data, continuam por resolver1,7,12,15–17.
A incerteza daí resultante deve‐se, em parte, à heterogeneidade dos estudos em análise, ao seu desenho, ao tamanho da população incluída, ao fraco poder estatístico alcançado, à falta de inclusão de determinadas variáveis, à presença de fatores confundidores e a outras inadequabilidades que seria fastidioso indicar.
Neste contexto, Inal et al.18, com a finalidade de determinarem o valor prognóstico de algumas características clínicas de doentes com carcinomas pulmonares de não pequenas células (CPNPC) em estádio avançado, sob terapêutica com dupletos à base de platino – especialmente no que se refere ao impacto da DM no intervalo livre de progressão da doença (PFS) e na sobrevivência global dos doentes (OS) –, implementaram um estudo retrospetivo (442 doentes com CPNPC em estádio avançado da doença, sendo 66 diabéticos), cujos resultados se encontram publicados no presente número da Revista Portuguesa de Pneumologia18.
Nesse estudo analisam variáveis potencialmente prognósticas, incluindo a DM, constatando, por análise univariada, que, para a OS, o PS, o estádio da doença, a presença de DM, de metástases hepáticas ou cerebrais, apresentavam significado prognóstico, enquanto para o PFS só tinham relevância o estádio, a presença de DM ou a de metástases hepáticas.
Pela análise multivariada dos resultados, o mau PS, a presença de DM e o estádio avançado, foram considerados fatores de prognóstico negativo independentes para a OS, tendo a DM e o estádio esse mesmo significado no que se refere ao PFS.
Perante essas constatações, os autores concluíram que a DM, na altura do diagnóstico, comportou‐se como um fator de prognóstico negativo para o PFS e para a OS, nos doentes com CPNPC em estádio avançado, que se encontravam sob terapêutica de primeira linha à base de dupletos com um platino, e que, tal como o mau PS, o estádio avançado da doença também foi identificado como fator de prognóstico negativo.
Os presentes resultados não surpreendem no que diz respeito ao valor prognóstico que classicamente é atribuído ao PS e ao estádio anatómico dos CPNPC11, mas, no que se refere à DM, esse papel poderá ser questionado dada a pequena amostra de doentes em análise, ao facto de se tratar de um estudo retrospetivo e a população diabética não estar suficientemente definida e estratificada de acordo com a duração da DM, os níveis séricos da glicemia, o seu grau de controlo e as terapêuticas instituídas, e poderem existir subdiagnósticos na população considerada não diabética, como de resto é admitido pelos próprios autores18.
Os estudos retrospetivos são largamente utilizados em investigação clínica por serem pouco onerosos e se basearem em dados facilmente acessíveis, registados nos processos clínicos dos doentes, mas a sua importância irá depender da qualidade desses mesmos registos, sendo que dados importantes poderão estar ausentes, apresentando ainda outras desvantagens como sejam a dificuldade em controlar enviesamentos e dados confundidores – por falta de randomização e de ocultação –, assim como a de estabelecer uma relação de causa e efeito entre as varáveis em apreciação19.
Os seus resultados são, no melhor dos cenários, geradores de hipóteses, que deverão ser confirmadas em estudos prospetivos alargados, os quais, por definição, correspondem a um patamar superior de qualidade científica19.
Contudo, têm o mérito de se comportarem como trabalhos piloto que poderão contribuir para uma melhor definição da questão colocada, para a determinação do tamanho apropriado da amostra e das variáveis a incluir, a identificação de condicionantes de viabilidade, assim como para a formulação e clarificação da(s) hipótese(s)19.
O trabalho publicado no presente número18, apesar dos pressupostos apontados, tem o mérito de discutir a questão do eventual significado prognóstico da DM nos doentes com CPNPC em estádio avançado, vindo ao encontro daqueles que defendem que a sua presença é acompanhada de um pior prognóstico da doença oncológica12,17, sendo de realçar o facto de os autores proporem, como seria espectável19, a implementação de estudos prospetivos, multicêntricos, com um número alargado de doentes, para o esclarecimento das dúvidas que ainda persistem nesta área – a DM como fator de prognóstico positivo15, negativo12,17 ou nulo16.
A inibição do insulin‐like growth factor 1 receptor20 (IGF‐R1) tem sido encarada como uma terapêutica dirigida nos CPNPC em estádio metastático, nomeadamente com o figitumab associado a quimioterapia convencional, mas os resultados alcançados foram negativos no que se refere à OS e à iatrogenia, que incluiu diabetes grave numa percentagem significativa de casos21, ficando a questão de sabermos se, no futuro, a inibição desse alvo terapêutico, com outros fármacos, poderá influenciar o prognóstico dos doentes.
Entretanto, os doentes diabéticos, com indicação para terapêuticas oncológicas, deverão ser objeto de uma abordagem rigorosa e especializada no sentido de alcançarmos o controlo da sua hiperglicemia, o que, comprovadamente, levará a uma melhoria dos resultados dessas intervenções antineoplásicas2.
Conflito de interessesO autor declara não haver conflito de interesses