A proteinose alveolar (PAP) é uma doença rara. A prevalência é desconhecida mas um estudo Japonês recente aponta para 6-7 por milhão na população geral1.
Existem várias formas de proteinose alveolar: 1) PAP devida a alteração no sinal de GM-CSF – a forma auto-imune/comum de PAP e a doença associada ao deficit das cadeias α e β dos receptores do GM-CSF; 2) PAP secundária a outras doenças; 3) doença genética de produção do surfactante- deficiência de proteína B, disfunção da proteína C e da proteína ABCA3.
A forma auto-imune de PAP é a forma mais frequente, sendo responsável por 90% dos casos. Actualmente é considerada uma doença auto-imune pela presença de níveis elevados de autoanticorpos neutralizantes do GM-CSF, que tem um papel muito importante na homeostase do surfactante pulmonar, diferenciação terminal dos macrófagos, função imunológica e nas funções de defesa do pulmão. Os níveis sérios de autoanticorpos não têm no entanto correlação com a gravidade da doença.
A PAP manifesta-se sobretudo em homens com uma relação homem/mulher de 3:1. O início da doença tem um pico nos 30-50 anos. Mais frequente em fumadores e em indivíduos com exposições ambientais inespecíficas.
O diagnóstico da doença é frequentemente tardio. Cerca de 1/3 dos doentes são assintomáticos sendo a doença diagnosticada na sequência de radiografia de tórax de rotina. A história natural da doença é variável, podendo haver melhoria/resolução espontânea, persistência, recorrência de sintomas ou agravamento progressivo. Pensa-se que a remissão espontânea possa ocorrer em 1/3 dos casos.
A lavagem pulmonar total (LPT) foi até recentemente o gold standart do tratamento da PAP e o único tratamento que modificou a história natural da doença. É uma técnica que é segura, eficaz e bem tolerada, quando efectuada por pessoal experiente2,3.
Na casuística do Royal Brompton Hospital of London, todos os doentes tratados com LPT obtiveram, ao fim de número variável de intervenções, remissão completa da doença. Na série de Baccaria 70% dos doentes que efectuaram LPT, mantinham-se livres de doença ao fim de 3 anos. Mais recentemente, a administração de GM-CSF recombinante, quer por via subcutânea ou em aerossol, tem sido utilizada na PAP.
Os resultados desta terapêutica têm sido apresentados em pequenas séries apontando para resposta da doença em 30-50% dos doentes. Está ainda por definir a dosagem, forma de administração e duração ideal do tratamento. O GM-CSF recombinante é um fármaco caro mas que pode ser de grande utilidade nos casos em que o acesso à realização de LPT seja difícil ou quando exista contra-indicação para anestesia geral.
Quando se lida com doenças raras a informação disponível é muitas vezes insuficiente. Por exemplo, não há dados que permitam o correcto aconselhamento de uma gravidez numa doente com PAP. Esta é uma das razões pelas quais o artigo de Belchior e col4 é importante.
Descrevem uma doente de 44 anos, com PAP diagnosticada 2 anos antes. Tinha tido 7 gravidezes prévias durante as quais não houve sinais de doença pulmonar. Desde o diagnóstico de PAP esta foi a primeira gravidez e às 8 semanas a doente recorre com dispneia e insuficiência respiratória -PaO2 de 53mmHg. Nessa altura foi feita LPT sequencial com melhoria da PaO2 para 83mmHg. A restante gravidez decorreu sem problemas major nascendo uma criança saudável, de cesariana às 37 semanas.
Matuschak e col.5 relataram também o caso de outra doente de 23 anos, já com diagnóstico conhecido de PAP e que também tinha tido uma gravidez prévia, esta gemelar mas complicada por hipoxemia (53mmHg). Na altura não foi efectuada qualquer terapêutica e a gravidez terminou com o nascimento de 2 bebés do sexo feminino com baixo peso. Às 32 semanas da actual gestação, constatou-se novamente hipoxemia e foi realizada LPT sequencial. Não houve complicações com a LPT. A PaO2 subiu de 52 para 64mmHg, a doente manteve-se em oxigenoterapia domiciliária e teve um parto de termo, por via vaginal nascendo uma criança saudável.
Canto et al6 publicaram o caso de uma mulher de 19 anos com PAP familiar, doença pulmonar restritiva moderada e que teve um bebé às 32 semanas e 6 dias de parto vaginal. A sua função pulmonar manteve-se estável durante toda a gravidez e não foi efectuada LPT ou outra terapêutica.
Crocker et al.7 por sua vez, descreveram uma grávida à qual foi diagnosticada PAP às 33 semanas de gestação. Apresentou-se com dificuldade respiratória e uma insuficiência respiratória parcial com PaO2 de 45mmHg em repouso pelo que foi efectuada cesariana de urgência. Após a cesariana o diagnóstico de PAP foi confirmado por Lavagem Broncoalveolar e biopsia pulmonar. Só após 14 LPT se conseguiu obter uma função pulmonar normal. A criança foi admitida em unidade de neonatalogia com o diagnóstico de doença de membrana hialina.
Huisman et al8, num artigo em holandês, apresentam uma doente já com diagnóstico de PAP e tratada com GM-CSF recombinante o qual foi suspenso antes da concepção. Fez cesariana e o tratamento com GM-CSF foi retomado após a gravidez.
Nós apresentámos num Congresso Nacional (dados não publicados) também uma doente de 38 anos com o PAP com 19 anos de evolução e já submetida previamente a 15 LPT. Tinha uma doença restritiva moderada. Quando a doente decidiu tentar engravidar foram discutidas as opções e efectuaram-se duas LPT (uma à direita e outra à esquerda) para que se encontrasse nas melhores condições funcionais possíveis. Às 25 semanas observou-se dessaturação no esforço até 88-89% e foi prescrita oxigenoterapia. Nessa altura considerou-se não ser necessário fazer LPT e a doente foi apertadamente vigiada: a partir das 28 semanas as saturações de O2 no esforço mantiveram-se acima dos 90%, a oxienoterapia foi mantida até às 38 semanas e 6 dias altura em que efectuou cesariana com nascimento de bebé do sexo feminino, saudável. A PaO2 durante o parto desceu aos 52mmHg sendo de 79,8mmHg 12 horas pós o parto. Após esta primeira gravidez não tornou a necessitar de LPT e as imagens visíveis no RX de tórax e na TC de tórax melhoraram significativamente, mantendo embora uma ligeira restrição. Dois anos depois decidiu tentar uma nova gravidez. Dada a estabilidade clínica e funcional optámos por não fazer LPT prévia. A gravidez decorreu sem quaisquer complicações, sem necessidade de aporte de O2, tendo tido um parto por cesariana às 38 semanas e nascido um bebé saudável do sexo masculino.
Dos casos acima discutidos podemos concluir que a gravidez em doentes com PAP é possível quer do ponto de vista da grávida quer do ponto de vista da criança. A LPT foi nestes casos efectuada às 8 semanas e às 33 semanas sem complicações quer para a mãe quer para o feto. Mesmo com evidência de doença restritiva na maioria das doentes nem sempre foi necessário qualquer tipo de intervenção. Idealmente, numa doente com PAP já conhecida, a gravidez deveria ser planeada para que pudesse acontecer numa altura em que a função pulmonar fosse a melhor possível, quer através da realização de LPT electiva quer por tratamento com GM-CSF recombinante. Neste momento ainda pouco se sabe sobre os efeitos, quer na grávida quer no feto do GM-CSF recombinante. No entanto, dada a evidência de que os abortos recorrentes de causa não explicada9 estão associados a níveis baixos de GM-CSF, é possível que esta terapêutica possa vir a ser considerada durante a gravidez. Seria um recurso muito interessante, sobretudo em grávidas demasiado doentes para tolerar uma LPT. É ainda de salientar que alguns obstetras com experiência com gravidezes em mulheres com doenças pulmonares hipoxemiantes advogam intervir apenas quando o grau de hipoxemia não puder ser mantido acima de 80% de saturação de O2.
Muitas questões ficam necessariamente em aberto. A PAP é sem dúvida uma doença fascinante. É minha opinião que casos clínicos acerca de particularidades de doenças raras deveriam ser aceites para publicação em revistas indexadas na MedLine. Sem dúvida que a prática clínica tem de ser pautada pelos resultados de ensaios clínicos mas no caso de doenças raras, o estudo dos casos clínicos disponíveis na literatura é muitas vezes a única ajuda possível.