A eficiência do transporte mucociliar pode variar em diferentes condições, como na exposição a partículas nocivas do fumo do cigarro. O presente estudo avaliou os efeitos do cigarro, tanto imediato quanto a curto prazo, no transporte mucociliar nasal de fumadores por meio da quantificação do tempo de trânsito da sacarina (TTS), e correlacionou-os com a intensidade de consumo tabagístico.
MétodosDezanove fumadores ativos (11 homens; 51±16 anos; IMC 23±9kg/m2; 27±11 cigarros/dia; 44±25 anos/maço), participantes de programa de intervenção antitabagismo, responderam a um questionário referente ao histórico tabagístico e foram submetidos à avaliação da função pulmonar (espirometria) e transporte mucociliar (pelo TTS), este imediatamente e após 8 horas do acto de fumar. Para comparação, um grupo pareado composto por 19 indivíduos saudáveis não fumadores foi avaliado por meio dos mesmos testes.
ResultadosQuando comparados ao TTS de não fumadores (10±4min; média±desvio padrão), os fumadores apresentaram tempo de transporte similar imediatamente após fumar (11±6min; p=0,87) e significativamente mais lento 8 horas após fumar (16±6min; p=0,005 versus não fumadores e p=0,003 versus fumadores). Em fumadores, o TTS 8 horas após fumar correlacionou-se positivamente com a idade (r=0,59; p=0,007), o número de cigarros/dia (r=0,53; p=0,02) e o índice anos/maço (r=0,74; p=0,0003).
ConclusãoEmbora indivíduos fumadores imediatamente após fumar apresentem transporte mucociliar similar ao de indivíduos não fumadores, 8 horas após o consumo tabagístico o transporte mucociliar mostra-se reduzido e relacionado com hábitos tabagísticos.
The efficiency of mucociliary transport may vary in different conditions, such as in exposure to harmful particles of the cigarette smoke. The present study evaluated the acute and short term effects of smoking on nasal mucociliary clearance in current smokers by the quantification of the Saccharin Transit Time (STT), and to investigate its correlation with the history of tobacco consumption.
MethodsNineteen current smokers (11 men, 51±16years; BMI 23±9kg/m2, 27±11 cigarettes per day, 44±25 pack-years), entering a smoking cessation intervention program, responded to a questionnaire concerning smoking history and were submitted to lung function assessment (spirometry) and the STT test. STT was assessed immediately after smoking and 8hours after smoking. The STT test was also performed in nineteen matched healthy non-smokers’ who served as control group.
ResultsWhen compared to STT in non-smokers’ (10±4min; mean±standard deviation), smokers presented similar STT immediately after smoking (11±6min; p=0.87) and slower STT 8hours after smoking (16±6min; p=0.005 versus non-smokers’ and p=0.003 versus immediately after smoking). STT 8hours after smoking correlated positively with age (r=0.59; p=0.007), cigarettes per day (r=0.53; p=0.02) and pack-years index (r=0.74; p=0.0003).
ConclusionsIn smokers, although the mucociliary clearance immediately after smoking is similar to non-smokers’, eight hours after smoking it is reduced, and this reduction is closely related to the smoking habits.
O transporte mucociliar é o principal mecanismo de defesa do seu epitélio contra os agentes patogénicos e toxinas, tanto de vias aéreas superiores quanto inferiores1,2. Entretanto, deve-se ressaltar que a eficiência de transporte pode variar em diferentes condições, dentre elas à exposição a partículas nocivas presentes no fumo do cigarro3.
Estudos in vitro e in vivo mostram que a exposição do epitélio ciliado às partículas presentes no fumo do cigarro resulta em significativa diminuição na frequência de batimento ciliar4,5. Cohen et al.6 mostraram que a frequência de batimento ciliar estava alterada em consequência da exposição ao fumo do cigarro, e portanto o transporte mucociliar estava também prejudicado. Em contraste, Stanley et al.7 não encontraram diferença na frequência do batimento ciliar entre fumadores e não fumadores e relataram uma frequência de batimento ciliar normal. Adicionalmente, os autores observaram que em fumadores regulares o transporte mucociliar é mais lento, e sugeriram que a exposição da mucosa nasal aos produtos tóxicos do fumo do cigarro varia consideravelmente entre os fumadores dependendo do tipo de cigarro e se o fumo era exalado pelo nariz ou boca7. Outros autores observaram, além disso, que a velocidade do muco de não fumadores é mais rápida que de ex-fumadores8.
Portanto, como conceito geral, diferenças no transporte mucociliar entre fumadores e não fumadores são comummente observadas. No entanto, apesar desses dados preliminares, o transporte mucociliar ainda não foi estudado com a profundidade necessária. Por exemplo, as diferenças entre a resposta aguda e crónica do sistema mucociliar à exposição do fumo do cigarro não foram profundamente investigadas, bem como a associação entre o comprometimento do transporte mucociliar e o histórico individual de consumo tabagístico. Assim, o objectivo deste estudo foi avaliar os efeitos do tabagismo sobre a depuração mucociliar nasal em fumadores, imediatamente e oito horas após o fumar, por meio da quantificação do tempo de trânsito sacarina (TTS), além de investigar a sua correlação com o histórico tabagístico desses indivíduos.
Casuística e métodoAmostraForam avaliados dois grupos de indivíduos: 19 fumadores, classificados na sua maioria como fumadores pesados (fumam 20 ou mais cigarros por dia)9, participantes do Programa de Orientação e Consciencialização Anti-Tabagismo, e 19 não fumadores pareados (Tabela 1). Seriam excluídos indivíduos portadores de fibrose cística, bronquiectásicos, síndrome dos cílios imóveis, com história de cirurgia ou trauma nasal, e com processo inflamatório das vias aéreas superiores definidos durante a entrevista e ficha de avaliação inicial, assim como aqueles com doenças tabaco-relacionadas atestados clinicamente e pela espirometria. Os indivíduos não fumadores foram questionados quanto ao contacto directo ou indirecto com o fumo do cigarro em casa ou no ambiente de trabalho, questionamento ao qual todos responderam negativamente. Aos participantes foi previamente comunicado quais os objectivos e procedimentos da pesquisa e, após a sua autorização, assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido para então passarem a fazer parte da pesquisa. O estudo contou com a aprovação do Comité de ética em Pesquisa da instituição (parecer n°: 215/2007).
Características dos grupos estudados (fumadores e não fumadores).
Fumadores (n=19) | Não fumadores (n=19) | |
---|---|---|
Idade (anos) | 51±16 | 47±11 |
Sexo (m/f) | 11/8 | 10/9 |
Peso (Kg) | 70±12 | 77±17 |
Altura (cm) | 165±11* | 167±0,12 |
IMC (Kg/m2) | 23±9 | 27±4 |
Consumo cig/dia | 27±16 | - |
Tempo de fumo (anos) | 33±11 | - |
Índice anos/maço | 44±25 | - |
Dados apresentados em média±desvio padrão.
Abreviações: IMC, Índice de massa corpórea.
Todos os indivíduos incluídos no estudo realizaram uma entrevista para obtenção dos dados pessoais e histórico tabagístico (tempo de tabagismo, número de cigarros/dia, anos/maço), e em seguida foram avaliados quanto à função pulmonar (pela espirometria) e transporte mucociliar (por meio do TTS). Os testes foram realizados em ambiente de laboratório em dois dias de experiência. No primeiro dia, os indivíduos foram submetidos à entrevista inicial, seguido de espirometria, e foram convidados a fumar um cigarro inteiro, para que fosse realizado a quantificação da TTS imediatamente após fumar. As avaliações de TTS ocorreram sempre entre 17:00h e 19:00h. No dia seguinte, os mesmos indivíduos foram instruídos a iniciar o dia mantendo seu hábito tabagístico regular, mas a fumar o último cigarro entre 09:00h e 11:00h, e depois permanecer o dia inteiro sem fumar; após esse período, um TTS foi realizado exactamente oito horas após o indivíduo ter fumado o seu último cigarro, ou seja, mais uma vez, entre as 17:00h e 19:00h. Para efeitos de confirmação, todos os indivíduos foram directamente questionados sobre ter permanecido ou não abstémios do cigarro pelo período de 8 horas, questionamento ao qual todos responderam positivamente.
Avaliação da função pulmonarPara a mensuração da função pulmonar foi realizada espirometria simples, por meio do aparelho MIR–Spirobank (MIR, Itália) versão 3.6 acoplado a um microcomputador, segundo critérios estabelecidos pelas Directrizes para Testes de Função Pulmonar10. Os valores de normalidade foram relativos à população brasileira11.
Quantificação do transporte mucociliar nasal (tempo de trânsito da sacarina - TTS)Para a mensuração da velocidade do transporte mucociliar nasal foi utilizado o TTS12, como descrito por Rutland e Cole13. O teste mostrou-se válido e reprodutível14.
Os indivíduos foram posicionados sentados e com a cabeça levemente estendida, e 5μg de sacarina sódica granulada foram introduzidos por meio de um canudo plástico, sob controlo visual, a aproximadamente 2cm para dentro da narina direita. A partir deste momento, o cronómetro (marca Track.Pro) foi accionado e registou o tempo despendido para o relato da sensação adocicada na boca. Os indivíduos foram orientados a manter a posição original e não era permitido falar, tossir, espirrar, coçar ou assoar o nariz, além de serem instruídos a engolir poucas vezes por minuto até que sentissem um gosto doce em sua boca. Se não ocorresse a percepção do sabor dentro de 60 minutos o teste seria interrompido e seria avaliada a capacidade do indivíduo em perceber o gosto da sacarina, colocando-a em sua língua, e então o teste seria repetido em outro dia. Os indivíduos foram instruídos a não fazer uso de medicamentos tais como anestésicos, analgésicos barbitúricos, calmantes e anti-depressivos, de bebidas alcoólicas e de substâncias à base de cafeína no mínimo 12 horas antes da mensuração do TTS.
Análise estatísticaOs dados foram analisados pelo programa GraphPad Prism 3.0 (Inc., San Diego CA, USA). A normalidade na distribuição dos dados foi avaliada por meio do teste de Shapiro-Wilk, e ao apresentar distribuição normal dos dados, foram utilizados testes estatísticos paramétricos. A descrição dos resultados foi realizada como média e desvio padrão. Para comparação entre os dois momentos no grupo tabagista foi utilizado teste t pareado, e para a comparação entre grupos foi utilizado o teste t não pareado. As correlações foram avaliadas por meio do coeficiente de Pearson. Significância estatística foi determinada como p<0,05.
ResultadosTrinta e oito indivíduos participaram do estudo (19 fumadores e 19 não fumadores, Tabela 1). Não houve necessidade de nenhuma exclusão.
Quando comparado com o TTS de não fumadores (10±4min, média±desvio padrão), os fumadores apresentaram TTS similar imediatamente após fumar (11±6min; p=0,87) e TTS mais lento oito horas após fumar (16±6min; p=0,005 versus não fumadores e p=0,003 versus imediatamente após fumar) (fig. 1).
Não houve correlação significativa entre o TTS imediatamente após fumar com nenhuma das variáveis analisadas. Houve correlação positiva significativa do TTS 8 horas após fumar com idade (r=0,59; p=0,007), consumo de cigarros por dia (r=0,53; p=0,02), tempo de tabagismo (r=0,54; p=0,02) e índice anos/maço (r=0,74; p=0,0003) (fig. 2).
DiscussãoEste estudo mostrou a resposta aguda e crônica da depuração mucociliar nasal à exposição ao fumo de cigarro em fumadores. Imediatamente após o acto de fumar o transporte mucociliar nasal de fumadores de consumo relativamente intenso apresenta valores próximos daqueles apresentados por não fumadores. Entretanto, a avaliação destes mesmos fumadores 8 horas após fumar mostrou que o transporte tem a sua eficiência diminuída. Ainda o presente estudo, mostrou também que, em situações não-agudas, o transporte mucociliar nasal foi mais lento em indivíduos com maior tempo e intensidade de hábito tabagístico.
A exposição ao tabaco tem efeitos profundos sobre a função mucociliar, mas a base dos mecanismos envolvidos ainda não foi elucidada. A dificuldade na explicação deve-se a diversos factores: a complexidade dos componentes do aparelho mucociliar; a complexidade das diversas substâncias presentes no fumo do cigarro; e o facto das técnicas de mensuração de tempo de afastamento das partículas dependerem não só da velocidade mucociliar, mas também da distribuição de partículas e dos padrões de deposição15. Adicionalmente, a ausência de uma padronização no controle de temperatura, humidade e do momento da análise das variáveis pode levar à incongruência entre os resultados, dificultando a comparação com estudos de mesma natureza.
O TTS em fumadores imediatamente após fumar foi similar ao de indivíduos não fumadores (fig. 1). Uma hipótese para tal achado é que o consequente “aumento” no transporte mucociliar nasal, uma resposta epitelial aguda, poderia representar uma defesa contra um agente agressor como o fumo do cigarro16. Esta provavelmente teria sido mediada por um aumento da frequência do batimento ciliar consequente do estímulo de mediadores inflamatórios16, ou em consequência da estimulação dos receptores nervosos que se encontram ao redor das células luminais17. Em estudo de Lindberg & Dolata18, a exposição aguda ao fumo de cigarro em coelhos foi associada ao aumento da actividade mucociliar e este efeito foi, primeiramente, mediado por reflexo via estimulação do receptor NK1, seguido dos efeitos irritantes do cigarro nos nervos aferentes sensoriais das vias aéreas superiores.
A diferença entre o TTS imediatamente e após 8 horas do acto de fumar pode, também, ser um efeito da nicotina sobre o sistema nervoso autónomo (SNA). Deve-se ressaltar que esta substância provoca estimulação simpática neural, que ocasiona activação do metabolismo geral do corpo19. Adicionalmente, o seu efeito sobre o sistema nervoso parassimpático está relacionado com os receptores nicotínicos de acetilcolina, que se encontram aumentados em situação de fumo crónico20. Tais condições poderiam alterar o transporte mucociliar nasal, pois o nariz apresenta inervação motora, sensorial e autónoma21. O SNA estimulado gera efeitos nasais tais como hipersecreção glandular e vasodilatação22, o que justificaria um transporte mucociliar aumentado. Portanto, um TTS próximo dos valores de normalidade encontrado em fumadores imediatamente após o fumo pode estar relacionado com o efeito de activação desencadeado pelo sistema nervoso simpático, que incluiria uma possível aceleração do batimento ciliar. Entretanto, a nicotina circulante é metabolizada em duas horas, indicando que após esse período o efeito estimulador cessa, e o batimento ciliar do fumador, ou seja, a eficiência de seu transporte e mecanismo de defesa, retornaria ao seu basal (prejudicada), como observado nesse estudo após o intervalo sem fumar.
O presente estudo sugere uma lentidão crónica da depuração mucociliar dos fumadores 8 horas após fumar, sem imediata exposição a poluentes, quando comparado a indivíduos saudáveis e não fumadores (fig. 1). Stanley et al.7 compararam o tempo de transporte mucociliar em fumadores e não fumadores, e também concluíram que o tempo de fumadores (21±9min) está aumentado em relação a indivíduos não fumadores (11±4min), não tendo sido entretanto detectadas diferenças na média da frequência do batimento ciliar. Se tal lentidão da actividade mucociliar não for associada à alteração no batimento ciliar, pode ser consequente de alterações estruturais, como redução de número de cílios e/ou mudanças na viscoelasticidade do muco7. Por meio de dados clínicos, radiográficos e testes de função respiratória, Verra et al.23 observaram que a percentagem de anomalias estruturais no epitélio brônquico foi maior em fumadores e ex-fumadores do que no grupo controlo. Os autores sugerem que o tabagismo crónico pode induzir um aumento do número de cílios anormais que poderiam participar no comprometimento da depuração traqueobrônquica23. Além disso, o facto do grupo de ex-fumadores também apresentar anomalias estruturais mostra que a abstinência do tabaco não foi capaz de recuperar totalmente estruturas já lesadas.
A exposição da mucosa nasal às toxinas do cigarro depende do número e tipo de cigarros fumados e dos hábitos tabagísticos7. Foi observada, neste estudo, correlação significativa entre o TTS após período de 8 horas sem fumar com o número de cigarros consumidos no dia, tempo de tabagismo e índice anos/maço. Possivelmente, o efeito da exposição crónica ao tabaco causou danos intensificados na população incluída nesse estudo, já que o consumo diário de cigarros era alto e por um período de tempo prolongado. O facto do TTS imediatamente após o acto de fumar não apresentar relação com o índice anos/maço remete-nos à acção da nicotina sobre o SNA, que apesar das possíveis alterações anatómicas e fisiológicas consequentes da exposição crónica ao cigarro, permanece inalterada.
Por fim, destaca-se que os achados deste estudo acrescentam novas informações à escassa literatura referente ao transporte mucociliar em fumadores, especialmente a resposta aguda desse mecanismo de defesa respiratório ao fumo do cigarro e da relação do transporte mucociliar com os hábitos tabagísticos. Contudo, espera-se que estudos com maiores períodos de abstinência e com fumadores em diferentes intensidades de consumo sejam realizados com o uso de protocolos mais aprofundados para possibilitar a identificação da dimensão dos danos no transporte mucociliar de fumadores.
ConclusõesConclui-se que, embora os fumadores imediatamente após fumar apresentem transporte mucociliar similar ao de não fumadores, 8 horas após fumar este transporte é reduzido. Essa redução está relacionada com a intensidade de consumo tabagístico, o que caracteriza uma deficiência deste mecanismo de defesa pulmonar nessa população.
Conflito de interesseOs autores declaram não haver conflito de interesse.
Este trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).