A granulomatose com poliangeíte (GPA), previamente denominada granulomatose de Wegener, é uma doença sistémica caracterizada por inflamação granulomatosa necrotizante e vasculite que envolve principalmente o trato respiratório superior e inferior, bem como os rins. O diagnóstico de GPA com base em biopsia por agulha fina (BAF) transtorácica pode ser problemático, levando ao diagnóstico incorreto de cancro. Os autores descrevem o caso de um paciente com provável GPA, inicialmente diagnosticado como cancro do pulmão, que curiosamente respondeu à quimioterapia para cancro do pulmão.
Granulomatosis with Polyangiitis (GPA), which was formerly named Wegener's Granulomatosis (WG) is a systemic disease characterized by necrotizing granulomatous inflammation and vasculitis that primarily involves upper and lower respiratory tract, as well as kidneys. Diagnosing GPA on the basis of transthoracic fine needle aspiration (TFNA) may be problematic, as it can be misdiagnosed as cancer. We describe a patient with a probable GPA which was originally diagnosed as malignancy, but who responded to lung cancer chemotherapy.
A granulomatose com poliangeíte (GPA), mais frequentemente denominada de Granulomatose de Wegener, é uma doença sistémica caracterizada por inflamação granulomatosa necrotizante e vasculite que envolvem principalmente o trato respiratório superior e inferior, bem como os rins. Esta pode por vezes apresentar-se sob a forma de lesões pulmonares solitárias ou multifocais, sem sinal de envolvimento extrapulmonar.
O diagnóstico de GPA com base em biópsia por agulha fina (BAF) transtorácica pode ser problemático, e pode ser incorretamente interpretado como cancro. Descrevemos o caso de um paciente com GPA, inicialmente diagnosticado como cancro do pulmão.
Caso clínicoUm homem de 45 anos, fumador de 20 unidades maço ano, diagnosticado com cancro do pulmão não-pequenas células (CPNPC) em estádio iv através de BAF transtorácica, foi submetido a 6 ciclos de quimioterapia com carboplatino e gemcitabina, tendo sido verificada remissão completa ao fim de 3 ciclos (fig. 1). Nesta altura foram revistos os estudos citológicos, mantendo-se o diagnóstico de CPNPC, e os anticorpos anti-citoplasma neutrofílico (ANCA) foram negativos. Manteve-se sob vigilância da equipa de Pneumologia Oncológica.
TC do tórax à data do diagnóstico (A) e 3 meses após o início de quimioterapia (B). A) Múltiplas lesões nodulares em ambos os pulmões. As maiores lesões apresentam-se nos ápices. B) Resolução das lesões nodulares após 3 ciclos de quimioterapia. Algumas alterações fibróticas sequelares podem ser observadas em ambas as regiões apicais.
Ao fim de um período assintomático de 15 meses sem sinais de recidiva, inicia quadro de dispneia de esforço, tosse seca, anorexia e perda ponderal (3 kg num mês). O exame objetivo era irrelevante e a radiografia torácica demonstrou múltiplos nódulos e massas em ambos os pulmões, alguns dos quais exibindo cavitação, conforme evidenciava a TC do tórax (fig. 2A e 2B).
A e B) A telerradiografia do tórax e TC aquando da recidiva dos sintomas (15 meses após quimioterapia) mostram múltiplos nódulos e massas de contorno irregular, alguns dos quais exibindo cavitação. C) Aspeto broncoscópico, evidenciando múltiplas lesões ulceradas e vascularização superficial ao longo de toda a árvore traqueobrônquica.
Nesta altura foi repetida BAF transtorácica de lesão nodular, que mostrou detritos celulares compatíveis com necrose tumoral.
Ao fim de uma semana surgem úlceras orais e rash purpúrico dos membros inferiores e pavilhões auriculares, bem como petéquias do palato mole. O estudo imunológico mostrou um título de anticorpos anti-citoplasma neutrofílico citoplasmáticos (cANCA) de 1/300 para proteinase 3 (PR3) > 200. O exame sumário de urina evidenciou sedimento ativo, com eritrocitúria e proteinúria. A broncoscopia rígida revelou lesões ulceradas ao longo de toda a árvore traqueobrônquica (fig. 2C).
As biópsias brônquicas provaram extensa necrose e vasculite, não se verificarando alterações sugestivas de neoplasia. Realizou-se também biopsia de lesão cutânea, que revelou vasculite leucocitoclástica.
Iniciou-se metilprednisolona 1g iv id 3 dias, seguido de ciclofosfamida 100mg PO e prednisolona 1mg/kg/d.
Após um período de melhoria clínica e radiológica, desenvolveu insuficiência respiratória grave com necessidade de ventilação mecânica e admissão na UCI. O lavado broncoalveolar repetido nesta altura permitiu isolar K. pneumoniae e M. intracellular, requerendo antibioterapia com imipenem, rifampicina, claritromicina e etambutol, mantendo ciclofosfamida iv. Constatou-se doença progressiva, com posterior desenvolvimento de síndrome nefrótico e insuficiência renal. Implementou-se terapêutica de resgate com plasmaferese e rituximab, mantendo ciclofosfamida e imunoglobulinas iv. Apesar de todas as medidas tomadas verificou-se desfecho fatal.
DiscussãoA GPA é uma vasculite de etiologia desconhecida, inicialmente reconhecida como uma entidade distinta por Friedrich Wegener em 1930, sendo caracterizada por inflamação granulomatosa envolvendo o trato respiratório e vasculite necrotizante que afeta predominantemente os vasos de pequeno calibre.
Apesar de afetar uma ampla distribuição etária, o pico da incidência é entre a 6.a e 7.a décadas, e não apresenta variação de incidência entre sexos. A incidência anual descrita varia entre 2,1 e 15 por milhão1. Os cANCA reativos para PR3 são muito (mas não inteiramente) específicos de GPA, sendo encontrados em aproximadamente 90% dos pacientes com GPA ativa generalizada e 60% da GPA ativa limitada2.
O diagnóstico histológico definitivo de GPA requer a coexistência de vasculite, granulomas e necrose, embora estas características sejam apenas encontradas numa minoria de especímenes. Podem ser encontradas apenas 1 ou 2 destas características, garantindo uma biopsia sugestiva, sendo então o diagnóstico suportado por critérios clínicos. Não obstante, a documentação histopatológica de envolvimento granulomatoso do trato respiratório não é estritamente necessária3. Assim, o diagnóstico de GPA baseia-se na combinação de características clínicas, patológicas e serológicas.
O caso descrito traduz uma provável GPA localizada, interpretada como CPNPC em estádio iv. Dado que o paciente tinha apenas doença pulmonar e as lesões eram sugestivas de lesões metastáticas, inicialmente não se pesquisou ANCA. Ainda assim, é sabido que a sensibilidade do cANCA é tão baixa como 60-70% na GPA limitada, tornando o diagnóstico mais difícil4.
A manifestação pulmonar mais comum da GPA são os nódulos pulmonares, que ocorrem em 40-70% dos indivíduos. Estes são geralmente múltiplos e bilaterais, surgindo sem predileção geográfica. O seu tamanho varia mais frequentemente entre 2 e 4cm, mas pode ir desde poucos milímetros até 10cm. O espetro de achados ao TC do tórax é amplo, desde nódulos e massas até opacidades em vidro despolido ou consolidações pulmonares. Quando se apresenta sob a forma de nódulos, pode ser facilmente mal interpretado como neoplasias primárias ou metastáticas, abcessos pulmonares ou enfartes sépticos5.
O envolvimento solitário ou multifocal do pulmão por GPA sem evidência de doença extrapulmonar revela-se por vezes um diagnóstico difícil pela sua variabilidade histopatológica e possível interpretação equivocada como cancro do pulmão. Inflamação aguda, detritos necróticos, células epiteliais e histiócitos reativos e células atípicas do epitélio brônquico, frequentemente presentes na GPA, podem ser interpretadas como adenocarcinoma ou mesmo carcinoma de células escamosas6,7. Awasthi e colegas relataram 6 casos de suspeita de GPA submetidos a BAF transtorácica; em 4 deles foram obtidos diagnósticos incorretos, um dos quais relatado como carcinoma de células escamosas8.
Uma vez que o valor preditivo positivo da BAF varia entre 96 e 100%, um indivíduo cujo exame revele malignidade tem uma elevada probabilidade de ter, de facto, doença maligna. No entanto, como em qualquer outro exame diagnóstico, a BAF transtorácica está sujeita a armadilhas diagnósticas que podem conduzir a diagnósticos falsos positivos; a taxa descrita de falsos-positivos na BAF pulmonar transtorácica é inferior a 1%9.
O seu rendimento diagnóstico é pior que o de outros métodos que fornecem amostras maiores como a core needle biopsy (CNB), biopsia brônquica ou biopsia pulmonar cirúrgica. Embora a CNB tenha vindo a provar ser um método preciso no diagnóstico de neoplasias pulmonares, existe ainda pouca informação na literatura acerca da sua utilidade no diagnóstico de patologia não maligna.
No presente caso, embora não se possa excluir terminantemente o cancro do pulmão como possível diagnóstico, a remissão completa de um CPNPC em estádio iv torna este menos provável. Aquando da constatação de remissão completa, questionando-se o diagnóstico de CPNPC, foi realizada pesquisa de ANCA, tendo sido negativa. Foi também solicitada nesta altura revisão da BAF transtorácica, bem como quando a forma generalizada de GPA era evidente; células gigantes multinucleadas, razão núcleo/citoplasma aumentada e cromatina irregular e contornos celulares irregulares eram sugestivos de carcinoma pouco diferenciado. No contexto de cancro do pulmão, as células gigantes multinucleadas podem estar presentes em frequências variáveis; embora invulgar no adenocarcinoma típico, estas são características de carcinoma de células gigantes e carcinoma sarcomatóide pleomórfico.
A pesquisa de mutação do recetor de fator de crescimento epidérmico (EGFR) na amostra citológica foi negativa, não ajudando ao diagnóstico diferencial. Só foi possível obter amostras histológicas aquando da recidiva da doença, confirmando o diagnóstico de GPA.
A GPA pode emergir como uma síndrome paraneoplásica, mais frequentemente no carcinoma de células renais. Existe apenas um caso descrito de GPA no contexto de cancro do pulmão, que não menciona se a terapêutica dirigida para a neoplasia do pulmão induziu remissão da GPA10,11.
Assumindo ab initium o diagnóstico de GPA, os citotóxicos usados na quimioterapia para cancro do pulmão, curiosamente, conduziram à remissão completa das lesões, bem como manutenção da remissão durante 15 meses. Tanto quanto sabemos, este é o primeiro caso descrito na literatura.
A recidiva da forma generalizada de GPA, embora com resposta inicial à terapêutica preconizada, foi complicada por várias intercorrências infecciosas e deterioração respiratória progressiva com desfecho fatal.
O presente caso descreve uma provável GPA com apresentação clinicamente indistinguível de cancro do pulmão e cuja citologia demonstrou, mesmo após revisão exaustiva, características de carcinoma indiferenciado, exemplificando a importância de considerar hipóteses alternativas mesmo quando um diagnóstico em particular parece óbvio.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.