O género Acinetobacter tem sido implicado numa grande variedade de doenças infecciosas, em particular, nas infecções associadas aos cuidados de saúde. Actualmente há evidência a enfatizar o papel deste microrganismo nas infecções adquiridas na comunidade.
É relatado o caso de uma criança previamente saudável, de 28 meses de idade, internada por febre associada a tosse e dor localizada no hemitórax esquerdo e cuja radiografia torácica revelou pneumonia necrotisante do lobo inferior. A investigação diagnóstica efetuada permitiu o diagnóstico de Pneumonia adquirida na comunidade a Acinetobacter lwoffii.
A criança partilhava frequentemente o seu equipamento respiratório com familiares idosos com doença pulmonar crónica obstrutiva. Dado não terem sido apurados outros factores de risco, considera-se que a partilha do equipamento poderá ter sido o foco infeccioso.
Os autores pretendem alertar para a possibilidade de Pneumonia adquirida na comunidade por Acinetobacter lwoffii, numa criança previamente saudável, relacionada com o mau uso e limpeza dos nebulizadores. Este caso realça o papel emergente desta bactéria, mesmo no contexto comunitário.
Acinetobacter is involved in a variety of infectious diseases primarily associated with healthcare. Recently there has been increasing evidence of the important role these pathogens play in community acquired infections.
We report on the case of a previously healthy child, aged 28 months, admitted for fever, cough and pain on the left side of the chest, which on radiographic examination corresponded to a lower lobe necrotizing pneumonia. After detailed diagnostic work–up, community acquired Acinetobacter lwoffii pneumonia was diagnosed.
The child had frequently shared respiratory equipment with elderly relatives with chronic obstructive pulmonary disease. As there were no other apparent risk factors, it could be assumed that the sharing of the equipment was the source of infection.
The authors wish to draw attention to this possibility, that a necrotising community-acquired pneumonia due to Acinetobacter lwoffii can occur in a previously healthy child and to the dangers of inappropriate use and poor sterilisation of nebulisers. This case is a warning of the dangers that these bacteria may pose in the future in a community setting.
O género Acinetobacter é um coco-bacilo gram negativo, identificado pela primeira vez em 19301 e é ubíquo no ambiente (solo, água corrente, vegetais, animais)1. O aumento sazonal do número de casos deve-se provavelmente à subida da temperatura ambiente2.
Esta bactéria foi ainda isolada nos alimentos, ventiladores, bombas infusoras, bancas, carrinhos de aço inoxidável, almofadas, colchões, água da torneira, grades das camas, humidificadores, dispensadores de sabão e outras fontes2.
Como se trata de um colonizador habitual da pele e da orofaringe2,3, é largamente reconhecido na etiologia da pneumonia nosocomial, em particular nas Unidades de Cuidados Intensivos, doentes imunodeprimidos, nutrição parentérica, antibioticoterapia de largo espectro (longo curso), procedimentos invasivos (entubação endotraqueal e nasogástrica, ventilação assistida), cateterização venosa prolongada3.
São raros os casos descritos de pneumonia adquirida na comunidade causada por este agente, com a maioria dos casos a corresponderem a situações de défice imunitário como o alcoolismo, insuficiência renal, doença pulmonar crónica obstrutiva (DPCO) e diabetes mellitus3,4. Por vezes, são relatados casos esporádicos em doentes saudáveis expostos a focos ambientais5, no entanto, ainda não foi identificado o reservatório natural para a infecção por Acinetobacter adquirida na comunidade6.
Descrição do caso clínicoCriança do sexo feminino, 28 meses de idade, plano nacional de vacinação atualizado (incluindo quatro doses da vacina antipneumocócica heptavalente) com antecedentes de pieira recorrente e de episódios de otite média aguda de repetição, desde os sete meses de idade. A criança partilhava frequentemente o seu equipamento respiratório com familiares idosos com DPCO. Este equipamento era utilizado no tratamento das agudizações da pieira.
A criança foi observada no Serviço de Urgência (SU), no mês de dezembro, por febre (39°C) com 4 dias de evolução e tosse por vezes emetizante, obstrução nasal e rinorreia. Inicialmente, foi diagnosticada uma otite média aguda de repetição e a doente foi tratada com claritromicina (15mg/kg/dia). Três dias depois, recorre novamente ao SU por persistência dos sintomas e dor no hemitórax esquerdo. Ao exame físico apresentava discreta palidez, adejo nasal e diminuição dos sons respiratórios à esquerda (sobretudo na base) e discreto atrito pleural.
O estudo laboratorial revelou aumento da contagem leucocitária 19.7×109/L; 73% de polimorfonucleares e 19.4% de linfócitos e Proteína C-reativa: 284.4mg/L; radiografia torácica revelou consolidação à esquerda ocupando o seio costofrénico e a ecografia torácica mostrou um pequeno derrame pleural. A Tomografia axial computorizada (ver fig. 1) revelou derrame pleural esquerdo, infiltração alveolar do lobo superior esquerdo com áreas de cavitação do segmento póstero-superior associado ao processo necrótico.
A doente foi internada num hospital de cuidados terciários para realização de antibioticoterapia endovenosa (ceftriaxone 75mg/kg/dia). Cinco dias depois, é isolado Acinetobacter lwoffii na hemocultura colhida imediatamente após a admissão no hospital. O esquema de antibioticoterapia foi alterado de acordo com o antibiograma para ceftazidime (115mg/kg/dia) e gentamicina (5mg/kg/dia), com evolução favorável após o início deste tratamento. O diagnóstico de pneumonia necrotisante adquirida na comunidade devido a este agente baseou-se nesta evidência.
A doente completou 18 dias de tratamento endovenoso e teve alta medicada com cotrimoxazol durante mais sete dias.
O estudo laboratorial efetuado durante a permanência da doente no hospital incluiu: estudo de fatores do complemento que foi normal, estudo imunológico humoral e celular que foi normal, serologias para vírus da imunodeficiência humana tipo 1 e 2 e para Mycoplasma pneumoniae que foram negativas e prova da tuberculina que foi negativa.
É difícil de explicar a provável fonte de Acinetobacter lwoffii no nosso caso em particular. Aliás, foram realizadas várias tentativas para tentar isolar possíveis fatores ambientais, incluindo a análise da água corrente, que não revelou quaisquer patogénios. A pesquisa de microrganismos no reservatório do aerossol não pôde ser efetuada por problemas técnicos.
Durante o período de seguimento de dois anos, a doente continua bem e não foi reinternada no hospital.
DiscussãoJá foram identificadas mais de 20 espécies pertencentes ao género Acinetobacter5. A espécie com maior importância clínica é o Acinetobacter baumanni e está associada a surtos hospitalares, existindo no entanto outras espécies associadas a doença nos humanos, nomeadamente, o Acinetobacter lwoffii1.
O Acinetobacter tem sido classificado como um microrganismo de baixa patogenicidade que normalmente é causa de infecções graves em hospedeiros imunocomprometidos5,6. É provável que vários fatores contribuam para a transição de agente colonizador a invasor.
Esta bactéria tem sido implicada numa grande variedade de infecções, principalmente, em infecções nosocomiais e mais raramente em infecções adquiridas na comunidade. Embora, as infecções da comunidade por este agente sejam raramente relatadas, a espécie Acinetobacter é cada vez mais reconhecida como um patogénio com elevada morbilidade e mortalidade no contexto comunitário2. A infecção mais comumente reportada é a Pneumonia. Embora, normalmente os doentes apresentem várias comorbilidades2, tem-se verificado um aumento do número de casos de infecções adquiridas na comunidade, mesmo em doentes não críticos7. Isto pode dever-se quer à sua capacidade de sobrevivência quer à resistência a grandes grupos de antibióticos3. Neste caso, a doente não apresentava nenhuma imunodeficiência ou outros fatores de risco.
A forma de apresentação mais comum caracteriza-se por um curso fulminante com dispneia de início súbito, tosse, dor torácica tipo pleurítica e febre que rapidamente progride para a insuficiência respiratória e choque3,5. É muito difícil fazer o diagnóstico diferencial com a pneumonia adquirida na comunidade devida a outras bactérias3,5.
A radiografia torácica pode revelar quer uma condensação lobar ou broncopneumonia, no entanto, pode haver envolvimento difuso ou bilateral4. O derrame pleural pode ocorrer em cerca de metade dos casos4. São poucos os casos de complicações com empiema ou abcesso e múltiplas cavitações4.
O diagnóstico definitivo baseia-se na presença de sinais clínicos compatíveis com pneumonia e isolamento do agente no lavado bronco-alveolar ou líquido pleural, biopsia pulmonar ou hemocultura. A hemocultura confirmou a suspeita e estabeleceu o diagnóstico definitivo de pneumonia adquirida na comunidade por Acinetobacter lwoffii. À semelhança do que tem sido descrito noutros estudos em adultos, esta parece tratar-se de uma entidade clínica única, com uma elevada prevalência de bacteriémia que se associa a uma maior mortalidade8.
Apesar, de terem sido feitas várias tentativas para isolar possíveis fatores ambientais, o foco da infecção não foi apurado. Uma das explicações será a partilha de nebulizadores entre a doente e os familiares idosos. Os doentes não devem partilhar nebulizadores, e quando prescritos, estes devem ser limpos e desinfetados após cada utilização de acordo com as instruções do fabricante e do médico9. Aliás, a deficiente desinfecção dos aerossóis entre os tratamentos de diferentes doentes pode funcionar como fonte de colonização e de infecção bacteriana levando a surtos graves de infecção. A partilha destes aparelhos poderá ter sido o foco de infecção nesta doente, já que não foram encontrados outros fatores de risco.
As resistências a vários antibióticos têm dificultado a abordagem terapêutica. São conhecidas as resistências à ampicilina, carbenicilina, cefotaxima e cloranfenicol e tem havido um aumento das resistências aos aminoglicosídeos4. De acordo com as recomendações da Sociedade Torácica Americana e de Doenças Infecciosas de 2005, a antibioticoterapia empírica deve consistir numa cefalosporina com atividade antipseudomona ou piperacilina / tazobactam associados a um aminoglicosídeo2. O tratamento definitivo deve basear-se nos resultados do antibiograma6 e deve ser mantido durante três semanas4. Para evitar um prognóstico desfavorável e prevenir o crescendo das resistências, é necessário o seu reconhecimento precoce e antibioticoterapia adequada baseada nos exames culturais e nos resultados do antibiograma7.
ConclusõesOs autores pretendem alertar para a possibilidade de pneumonia necrotisante adquirida na comunidade devido a Acinetobacter lwoffii, em crianças previamente saudáveis associada ao mau uso e esterilização dos nebulizadores.