Descrita em 1996, a acroqueratodermia aquagénica é uma entidade rara, caracterizada pelo aparecimento de pápulas edematosas palmares após contacto com água. Múltiplas associações foram enumeradas mas, recentemente, a associação a mutações do gene da fibrose quística foi demonstrada.
Descreve-se o caso de uma mulher de 18 anos, saudável, com prurido e edema palmar após imersão em água. O exame objetivo inicial não mostrava alterações mas, 5 min após imersão em água, observavam-se múltiplas pápulas esbranquiçadas palmares. O estudo do gene da fibrose quística (CFTR) revelou uma mutação F508del num dos alelos. A doente negava outras queixas ou história familiar relevante.
A acroqueratodermia aquagénica é uma entidade provavelmente subdiagnosticada que poderá constituir uma manifestação de mutações do gene CFTR, o que possibilitaria a identificação de portadores e aconselhamento genético.
Reported for the first time in 1996, aquagenic keratoderma is a rare condition which is characterized by edematous flat-topped papules appearing on palmar skin after water immersion. Multiple anecdotal associations have been described but, recently, the association with cystic fibrosis gene mutations (CFTR) has been highlighted.
The authors describe an 18 year-old female, with one-month complaints of pruritus and swelling of palmar skin after water immersion. On examination, palmar skin was unremarkable but, 5minutes after water immersion, multiple whitish papules became apparent. CFTR genotype study showed a F508del mutation in one alelle. She had no other symptoms and no relevant family history.
Aquagenic keratoderma is probably an under-diagnosed entity that might represent a manifestation of CFTR mutations, making carrier state identification and genetic counseling possible.
A acroqueratodermia aquagénica foi descrita pela primeira vez em 1996 por English e McCollough1. Desde então, múltiplas designações foram utilizadas na literatura: acroqueratodermia papulotranslúcida reativa transitória1, acroqueratodermia ductal aquagénica2 e queratodermia palmoplantar aquagénica3. Caracteriza-se por um espessamento das palmas, raramente atingindo as plantas, após breve imersão em água. Até à data, foram descritos na literatura, menos de 50 casos.
Apesar de múltiplas associações terem sido descritas, estudos recentes salientam a relação com as mutações no gene da fibrose quística (CFTR).
No presente artigo, os autores descrevem o caso clínico de uma doente com acroqueratodermia aquagénica associada a uma mutação do CFTR.
Caso clínicoDoente do sexo feminino, 18 anos de idade, raça caucasóide, referia queixas de prurido e edema palmar após breve imersão em água, com um mês de evolução. A imersão em água quente desencadeava os sintomas mais rapidamente e a dermatose regredia espontaneamente 20 min após a secagem das mãos. Não referia sintomas nas plantas ou outras queixas associadas. A sua história pessoal e familiar era irrelevante. Ao exame objetivo, inicialmente, não se detetavam alterações (fig. 1) no entanto, 5min após imersão das mãos em água, objetivavam-se múltiplas pápulas infracentimétricas, edematosas, de superfície aplanada e esbranquiçada dispersas nas superfícies palmares. A dermatoscopia mostrava pele edematosa com ostia dilatados (fig. 2). A biopsia cutânea de uma pápula palmar após imersão em água revelava hiperortoqueratose, edema da derme, dilatação do acrossiríngeo e ostia écrinos (fig. 3). O estudo do gene CFTR identificou uma mutação isolada F508. O teste do cloro no suor não foi efetuado. A doente foi medicada com cloreto de alumínio a 20%, tópico, com melhoria das lesões e queixas associadas. Tendo em conta o estado de portadora de fibrose quística, a doente e os familiares foram enviados para aconselhamento genético.
A acroqueratodermia aquagénica é uma entidade rara, caracterizada por pápulas cor da pele ou esbranquiçadas, edematosas, de superfície aplanada e com ostia dilatados que se distribuem simetricamente nas palmas e nas faces laterais dos dedos. Raramente as plantas podem ser afetadas. Tipicamente, as lesões cutâneas surgem após breve contacto com água quente3,4 ou fria1,2,5,6 e regridem pouco tempo depois da secagem das mãos. Na ausência de contacto com água, a pele palmar e/ou plantar destes doentes não apresenta alterações ou pode verificar-se a presença de hiperlinearidade e múltiplas pápulas milimétricas esbranquiçadas5,7. Habitualmente, as lesões são assintomáticas mas podem estar associadas a queixas de prurido e ardor. Esta entidade é mais frequente no sexo feminino3,8–10, especialmente nos grupos etários mais jovens (idade de início entre 9-42 anos)11,12. Apesar de, inicialmente ter sido proposto um padrão de transmissão autossómico recessivo1, casos recentes sugerem uma transmissão autossómica dominante13. Tipicamente, o exame histológico da biopsia das lesões cutâneas (após exposição à água) demonstra hiperqueratose, ortoqueratose, dilatação do acrossiríngeo e dos ostia das glândulas écrinas.
Diversas associações foram descritas nos últimos anos, nomeadamente atopia14, terapêutica com inibidores da COX-214,15, marasmo14, hiper-hidrose palmar14, fenómeno de Raynaud14, melanoma maligno1, doença de Behçet16 e psoríase ungueal16. No entanto, os estudos mais recentes salientam a possível relação entre a acroqueratodermia aquagénica e a fibrose quística. Estima-se que mais de metade dos doentes com acroqueratodermia aquagénica (56,7%) tem fibrose quística diagnosticada17. Apesar de a acroqueratodermia aquagénica ser mais prevalente nos doentes com fibrose quística, Gild et al.14 descreveram o primeiro caso associado a uma mutação isolada no gene CFTR, sugerindo assim que a acroqueratodermia aquagénica pudesse ser um sinal do estado de portador de fibrose quística.
A fisiopatologia da acroqueratodermia aquagénica permanece ainda desconhecida. Devido à concentração elevada de cloro no suor dos doentes com fibrose quística, foi sugerida a hipótese de que este aumento de cloro condicionaria um aumento na capacidade de retenção de água por parte dos queratinócitos18,19. No entanto, Berk et al.20 comprovaram que não existe relação entre a concentração de cloro no suor e o grau de enrugamento cutâneo. Outras hipóteses continuam ainda a ser debatidas, nomeadamente a disfunção das glândulas écrinas4,21, disfunção nervosa22, hiperhidrose21, defeitos na função de barreira do estrato córneo5,6, oclusão dos ostia dos ductos écrinos2 e fragilidade da parede dos ductos écrinos4.
De modo semelhante ao que foi descrito nesta doente, a mutação F508 é a que mais frequentemente está associada à acroqueratodermia aquagénica nos doentes com fibrose quística17. Apesar de esta ser a mutação mais frequente do gene CFTR (correspondendo a 70% das mutações identificadas nos doentes com fibrose quística do norte da Europa)17,23, alguns autores especulam que esta mutação em particular possa representar um fator predisponente para a acroqueratodermia aquagénica17,20.
Foram descritas diversas modalidades terapêuticas, entre as quais cloreto de alumínio3,17, anti-histamínicos5, toxina botulínica7 e iontoforese4, todas com resultados variáveis. Estão ainda descritos casos de remissão espontânea2,3,5,17.
No presente caso clínico, a acroqueratodermia aquagénica pode representar a única manifestação do estado de portadora de fibrose quística desta doente. Este facto salienta a importância de considerar e pesquisar este tipo de alterações genéticas nestes doentes. De forma semelhante, estas alterações cutâneas devem ser investigadas quer nos doentes com fibrose quística quer nos portadores de fibrose quística conhecidos, não só devido à existência de terapêuticas eficazes mas também devido ao facto de que novos casos e estudos poderão ajudar a esclarecer melhor a fisiopatologia de ambas as situações. Os autores acreditam que a acroqueratodermia aquagénica é uma entidade subdiagnosticada, que pode ser confundida com o empalidecimento e enrugamento fisiológico das palmas, provocado pela vasoconstrição normalmente associada à exposição prolongada à água24.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.