A Eikenella corrodens é um microrganismo habitualmente encontrado na mucosa oral, trato gastrointestinal e trato geniturinário de humanos. Os casos de infeção pleuropulmonar por este agente são raros em indivíduos imunocompetentes, sendo a aspiração um fator importante na sua patogenia. Apesar de apresentar geralmente um prognóstico favorável, o reconhecimento desta infeção é essencial dado o perfil de sensibilidades característico. Os autores apresentam um caso de empiema pleural por E. corrodens, em coinfeção com Porphyromonas asaccharolytica, numa doente diabética imunocompetente com síndrome de apneia obstrutiva do sono, discutindo o papel da ventilação não invasiva como fator predisponente da referida infeção.
Eikenella corrodens is a normal inhabitant of the human oral cavity and gastrointestinal and genitourinary tracts. Pleuropulmonary infections by this microorganism are uncommon. Pulmonary aspiration is a chief predisposing condition. Although the outcome is usually favorable, its distinctive antibiotic sensitivity pattern makes bacterial identification an important feature in dealing with this infection. The authors report a case of pleural empyema caused by co-infection with Eikenella corrodens and Porphyromonas asaccharolytica, in an immunocompetent diabetic patient with obstructive sleep apnea syndrome, followed by a discussion on the role of noninvasive ventilation in the development of this infection.
Doente do sexo feminino, de 69 anos de idade, com síndrome metabólica (obesidade, diabetes mellitus, hipertensão arterial e dislipidemia), insuficiência cardíaca classe ii de New York Heart Association (NYHA), fibrilhação auricular e síndrome de apneia obstrutiva do sono (SAOS) sob ventilação não invasiva noturna (VNI) com Continuous Positive Airway Pressure (CPAP) por máscara oronasal. Observada no Serviço de Urgência por agravamento do padrão habitual de dispneia desde há cerca de uma semana, associada a tosse seca, mas sem febre conhecida. À admissão, apresentava-se hemodinamicamente estável, com pressão arterial média de 114mmHg, pulso de 93batimentos/min e frequência respiratória de 24ciclos/min. Auscultatoriamente, com diminuição do murmúrio vesicular e da transmissão das vibrações vocais no hemitórax esquerdo. Cavidade orofaríngea sem lesões identificáveis à inspeção e dentição em razoável estado de conservação, com restante exame físico irrelevante. Analiticamente, com insuficiência respiratória hipoxémica e síndrome inflamatória sistémica. Rx torácico com evidência de derrame pleural de grande volume à esquerda. Efetuada toracocentese diagnóstica, a mostrar líquido macroscopicamente purulento, pelo que foi introduzido dreno pleural e iniciado empiricamente ceftriaxone e metronidazol. Ao sexto dia de internamento, isolada Eikenella corrodens não-produtora de β-lactamases no líquido pleural, pelo que se alterou antibioterapia para penicilina-G benzatínica; posteriormente isolada estirpe de Porphyromonas asaccharolytica multissensível na mesma amostra de líquido pleural. Restante estudo microbiológico negativo, incluindo hemoculturas e exames bacteriológico, micológico e micobacteriológico de expetoração.
Durante o internamento, com evolução clínica favorável e apirexia sustentada, sem necessidade de oxigenoterapia suplementar a partir do quinto dia de internamento, altura em que também foi retirado dreno torácico. Efetuada broncofibroscopia flexível, que não evidenciou alterações de relevo, com exame cultural do lavado broncoalveolar amicrobiano e citologia negativa para células malignas. Ecocardiograma transtorácico com hipertensão pulmonar em provável relação com SAOS.
Ao vigésimo-terceiro dia de internamento com derrame pleural residual, tendo tido alta com indicação de cumprir 2 semanas adicionais de antibioterapia com amoxicilina/ácido clavulânico e cinesiterapia respiratória. Sem intercorrências nos 2 anos após a hospitalização, mantendo ainda seguimento em ambulatório.
DiscussãoA E. corrodens pertence à população microbiana da cavidade oral, trato gastrointestinal e trato geniturinário, pelo que está habitualmente associada a infeções da cabeça e pescoço, bem como a infeções originadas por mordeduras humanas1,2. Este microrganismo pode ser também responsável por casos de endocardite, osteomielite, parotidite, sinusite, meningite, abcesso cerebral e corioamnionite1–4. A E. corrodens é um bacilo gram-negativo, cuja identificação se baseia nas características das colónias - morfologicamente pequenas, de contornos irregulares e centro mais claro, penetrando o meio e com cheiro a hipoclorito - bem como no comportamento bioquímico - catalase-negativas, com capacidade de redução de nitratos a nitritos2,3. O seu reconhecimento é importante, dado que é um isolado laboratorial incomum em exames culturais de rotina em aerobiose, sendo frequentemente necessários vários dias de incubação para se tornarem identificáveis. Este microrganismo é igualmente reconhecido pela resistência intrínseca à clindamicina e ao metronidazol, agentes com espetro de ação predominantemente anaeróbio5. Sendo muito raramente produtora de β-lactamases, é geralmente sensível à penicilina-G e à ampicilina; a sensibilidade às cefalosporinas é, no entanto, variável1–3.
A P. asaccharolytica é um bacilo gram-negativo anaeróbio estrito, que pertence à população microbiana do trato gastrointestinal e trato geniturinário6. As colónias deste microrganismo apresentam-se convexas e brilhantes, distinguindo-se morfologicamente pela produção de pigmentos de protoheme, o que lhes confere uma aparência negra caracteristicamente centrípeta. Encontram-se descritos na literatura muito raros casos de infeção humana por este microrganismo, estando habitualmente associados a infeções de tecidos moles, empiema pleural e abcesso apendicular.
A maior parte dos doentes com infeção pleuropulmonar por E. corrodens apresenta-se com derrame parapneumónico, empiema pleural, pneumonia e/ou abcesso pulmonar2,5,6. A coinfeção por outros microrganismos é comum, a maioria dos quais comensais da cavidade oral, incluindo estreptococos microaerofílicos, Streptococcus viridans, Bacteroides fragilis, Prevotella melaninogenica e P. asaccharolytica2,3,7. Alguns estudos sublinham a possibilidade de fenómenos de sinergismo entre estirpes estreptocócicas e E. corrodens1.
Os casos de infeção pleuropulmonar por E. corrodens são raros, particularmente em adultos imunocompetentes; estão descritos na literatura pouco mais de 15 destes casos. Para além da virulência da estirpe infetante, fatores intrínsecos ao hospedeiro podem predispor os doentes à infeção por este microrganismo, entre eles a existência de condições modificadoras da arquitetura pulmonar, agentes facilitadores de aspiração de conteúdo orofaríngeo e gastrointestinal, bem como outras causas que condicionem estados de imunossupressão3. De facto, verifica-se habitualmente uma relação próxima entre a infeção por E. corrodens e outros fatores como doença neoplásica, alcoolismo, diabetes mellitus, doença pulmonar crónica e doença cerebrovascular, para além de higiene oral deficitária ou utilização crónica de corticoterapia sistémica1–3,7.
Alguns estudos entretanto publicados na literatura destacam o papel da apneia do sono na predisposição a fenómenos de aspiração. Beal et al.8 concluíram que doentes com SAOS apresentam um risco superior de aspiração orofaríngea, comparativamente a indivíduos saudáveis. Do mesmo modo, Gleeson et al.9 realizaram uma avaliação quantitativa de material aspirado numa amostra de indivíduos saudáveis, tendo demonstrado que a aspiração era negligenciável naqueles sem SAOS; a principal razão para este achado não foi totalmente clarificada, embora se julgue que tal possa estar em relação com fatores geralmente associados a doentes com SAOS, tal como distúrbios anatómicos da orofaringe, excesso ponderal ou esforço respiratório aumentado. Outro estudo realizado por Terramoto et al.10 mostrou que o reflexo de deglutição se encontra severamente comprometido em doentes com SAOS; os autores sugerem que a apneia durante o sono pode comprometer a função normal dos recetores e fibras nervosas dos centros respiratório e da deglutição a nível cerebral, podendo predispor a fenómenos de aspiração.
Muitos doentes com SAOS apresentam-se com sintomas sugestivos de doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), embora não esteja ainda clarificada uma relação entre estas entidades clínicas. Devido ao desenho do próprio estudo, Beal et al.8 não conseguiram determinar se os fenómenos de aspiração dos doentes com SAOS eram devidos à aspiração orofaríngea per se, ou atribuíveis à aspiração de conteúdo por refluxo gástrico, embora nenhum deles apresentasse sintomas de DRGE. Do mesmo modo, Kerr et al.11 falharam na determinação de uma associação temporal entre apneia do sono e refluxo gastroesofágico. De referir que a maioria dos estudos que sugeriram uma prevalência superior de DRGE entre os doentes com SAOS não são estudos controlados12–14, sendo igualmente discutível a existência de uma relação causal, ou se esta é devida a fatores partilhados por ambas as entidades clínicas, como o alcoolismo ou a obesidade.
Concomitantemente, tem existido alguma discussão sobre o papel do CPAP na predisposição à aspiração orofaríngea. Embora Diaz et al.15 tenham demonstrado que a utilização de CPAP reduz o refluxo gastroesofágico em doentes com SAOS e DRGE - o que foi inicialmente interpretado como evidência de que a DRGE seria secundária a SAOS - pensa-se que este resultado possa não estar relacionado com o tratamento da apneia do sono pela VNI, mas representar apenas uma ação direta desta na alteração das pressões de repouso do esfíncter inferior e corpo do esófago; de facto, Kerr et al.16 mostraram, num outro estudo, que a utilização de CPAP pode diminuir o refluxo gastroesofágico, mesmo numa população de doentes sem SAOS. Por outro lado, Nishino et al.17 demonstraram que o CPAP influencia, de forma negativa, o reflexo de deglutição, o que poderá por si só facilitar fenómenos de aspiração orofaríngea.
O caso que apresentamos neste artigo refere-se a um empiema pleural por E. corrodens em coinfeção por P. asaccharolytica, numa doente diabética imunocompetente sob CPAP noturno por SAOS, sem sintomas de DRGE ou outros fatores predisponentes conhecidos para esta infeção. Extrapolando a partir destas premissas, é nossa convicção que a VNI poderá ter desempenhado um papel importante no desenvolvimento desta infeção, quer por potenciar de forma direta a aspiração orofaríngea, quer por inibir indiretamente o reflexo de deglutição, alterando, deste modo, o normal padrão de coordenação deglutição-respiração.
De qualquer modo, são necessários mais estudos randomizados para avaliar, de forma mais precisa, o papel da VNI no desenvolvimento de infeções pleuropulmonares.
ConclusãoA E. corrodens deve ser considerada como agente etiológico provável nos doentes com suspeita de infeção por anaeróbios que apresentem má resposta à clindamicina ou ao metronidazol. Os clínicos e o laboratório de microbiologia devem estar cientes desta possibilidade, de modo a permitir um diagnóstico precoce e tratamento dirigido.
O padrão de suscetibilidade antimicrobiana da E. corrodens e de outros microrganismos semelhantes deve ser considerado na escolha de um regime terapêutico adequado; nalguns casos poderá inclusivamente ser mesmo necessária a associação de diferentes antibióticos.
Apesar de não ser habitualmente mencionada como contexto epidemiológico para o desenvolvimento de empiema pleural, é nossa convicção que a aspiração orofaríngea de microrganismos, potenciada pela ventilação não invasiva, poderá ter sido responsável pela infeção descrita.
Responsabilidades éticasProteção de pessoas e animaisOs autores declaram que para esta investigação não se realizaram experiências em seres humanos e/ou animais.
Confidencialidade dos dadosOs autores declaram ter seguido os protocolos de seu centro de trabalho acerca da publicação dos dados de pacientes e que todos os pacientes incluídos no estudo receberam informações suficientes e deram o seu consentimento informado por escrito para participar nesse estudo.
Direito à privacidade e consentimento escritoOs autores declaram ter recebido consentimento escrito dos pacientes e/ou sujeitos mencionados no artigo. O autor para correspondência deve estar na posse deste documento.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.