A hipersonolência diurna é uma das manifestações mais relevantes da síndrome da apneia obstrutiva do sono (SAOS) e pode ser avaliada quer por testes subjetivos quer por testes objetivos. A escala de sonolência de Epworth (ESE) é um instrumento simples e validado que permite avaliar a sonolência diurna no contexto clínico de distúrbios do sono. No entanto, o seu caráter subjetivo pode condicionar a exata expressão do verdadeiro grau de sonolência. O uso clínico da ESE é demonstrado neste trabalho, mostrando que, no mesmo doente em momentos diferentes o score da ESE é díspar e como este score pode estar ou não relacionado em determinadas variáveis.
Assim, comparamos o grau de sonolência basal com o grau de sonolência na mesma situação, mas avaliado retrospetivamente após tratamento com pressão positiva contínua das vias aéreas (Automatic Positive Airway Pressure – APAP).
Realizamos um estudo prospetivo que incluiu 66 doentes observados na consulta de Patologia do Sono em que, após estudo poligráfico do sono ou cardiorrespiratório domiciliário, foi feito o diagnóstico de SAOS. Os doentes apresentavam uma idade média de 53,3 anos, sendo a maioria do sexo masculino (88%, n=58). Os doentes preencheram o questionário da ESE no dia da primeira consulta (pré APAP) e posteriormente, na consulta de seguimento, preencheram novamente a ESE referente ao período pós-tratamento com APAP e pediu-se, retrospetivamente, nova quantificação da ESE inicial. A média do score da ESE basal foi de 11,8, a retrospetiva de 15,4, com uma diferença média de 3,55 (p<0,001 t-Test) e após terapêutica com APAP 7,4. Não houve correlação entre a diferença do score da ESE (basal retrospetiva) com a média de tempo de uso diário do APAP (horas), com o índice de apneia-hipopneia (IAH), com a SatO2 mínima registada no estudo do sono, com a perceção do tempo de evolução da doença, com o índice de massa corporal (IMC) nem com a idade.
Estes resultados mostram que o grau de sonolência subjetiva estimado antes do tratamento é frequentemente subavaliado pelos doentes com SAOS.
Excessive daytime sleepiness is a major symptom in obstructive sleep apnea syndrome (OSAS) and can be evaluated using both subjective and objective methods. The Epworth Sleepiness Scale (ESS) is a simple and validated questionnaire for assessing subjective daytime sleepiness in the context of sleep disorders. Although its subjective character may limit the accurate expression of daytime sleepiness, the clinical benefit of sequential ESS is clear and demonstrates how ESS scores evolve in individual patients and how these scores may relate to various parameters.
In this context we compared the severity of daytime sleepiness reported at baseline visit with severity of baseline sleepiness assessed, retrospectively, after treatment with automatic positive airway pressure (APAP).
We conducted a prospective study that included 66 patients evaluated in a sleep clinic diagnosed with OSAS. The diagnosis was confirmed by in-laboratory or portable sleep studies. Their mean age was 53.3 years and the majority were men (88%, n=58). The ESS was answered during the first interview (baseline daytime sleepiness). During follow-up visits, after APAP treatment, the patient was asked to assess baseline sleepiness, retrospectively, as well as post-treatment sleepiness. The mean baseline ESS score was 11.8, mean retrospective baseline ESS 15.4, with a mean difference of 3.55 (p<0.001 t-Test) and post-treatment ESS 7.3. There was no significant correlation between the difference in ESS score (baseline - retrospective baseline) with the average daily (hours) use of APAP, the apnea-hypopnea index (AHI), the minimal recorded SatO2, disease duration, body mass index (BMI) and age.
Our findings confirm that the severity of subjective sleepiness reported before treatment with positive airway pressure is often underestimated by patients with OSAS.
A hipersonolência diurna é um dos principais sintomas dos doentes com SAOS e representa um novo problema de saúde pública devido às suas implicações clínicas1. A sonolência pode ser avaliada através de métodos subjetivos e objetivos. O Teste de Latência Múltipla do Sono (Multiple Sleep Latency Test – MSLT) e o Teste de Manutenção da Vigília (Maintenance of Wakefulness Test – MWT) pertencem a esta última categoria, sendo o MSLT considerado o teste de diagnóstico gold standard. Este teste mede a tendência para adormecer, ou seja, quantifica objetivamente o grau de sonolência diurna de acordo com a rapidez com que o doente adormece (latência do sono) quando são criadas condições favoráveis para tal2. Por outro lado, o MWT avalia a capacidade de manutenção da vigília3. No entanto, estes testes são caros, demorados e dificilmente exequíveis na prática clínica diária. A pupilografia é outro método objetivo de avaliação da sonolência, com um uso crescente, que avalia o diâmetro da pupila e, mais propriamente, o índice de instabilidade da pupila numa sala sem luminosidade4. A ESE é um método simples e validado, descrita pela primeira vez em 1991, e avalia a probabilidade de o doente adormecer em determinadas situações do dia a dia5–7. Consiste em 8 perguntas, cada uma com um score de gravidade que varia de 0 a 3, o que determina uma pontuação total entre 0 (mínimo) e 24 (máximo)6,7. É de fácil aplicabilidade prática e é, atualmente, o teste mais amplamente utilizado na avaliação subjetiva da sonolência8–10. Há muitos trabalhos publicados sobre a correlação entre a ESE e o MSLT e a concordância encontrada entre estes métodos na avaliação de sonolência foi apenas moderada6,10–12.
A sonolência excessiva diurna é um sintoma importante para decidir o tratamento dos doentes com SAOS, porque nem todos os doentes apresentam esta queixa. Existem alguns estudos que discutem o uso da pressão positiva das vias aéreas em indivíduos sem sonolência13; no entanto, o caráter subjetivo da ESE pode limitar a verdadeira perceção do grau de sonolência prévia ao tratamento.
ObjetivoUsando o mesmo instrumento de avaliação (ESE), o objetivo deste estudo foi comparar a gravidade da sonolência basal com a gravidade da sonolência na mesma situação mas avaliada retrospetivamente após terapêutica com APAP e compreender os mecanismos subjacentes a esta diferença.
Material e métodosRealizamos um estudo prospetivo que incluiu doentes observados consecutivamente na consulta de patologia do sono com o diagnóstico de SAOS efetuado através de estudo polissonográfico realizado no laboratório (nível i da ASDA), Somnostar®, ou de estudo cardiorrespiratório domiciliário (nível iii da ASDA)14, Embletta® and Stardust®.
Todos eles tinham um IAH antes do tratamento de pelo menos 10 e uma pontuação na ESE superior ou igual a 10 foi considerada um grau anormal de sonolência diurna6. Antes de iniciarem tratamento, analisámos a SatO2 mínima e a perceção da duração da doença (avaliada pela duração em anos de apneias presenciadas) e, após o início de tratamento, o IAH residual e o uso diário de APAP. Foram excluídos doentes com outros distúrbios do sono, nomeadamente com a síndrome das pernas inquietas e privação crónica de sono, e os que, após tratamento, apresentaram IAH residual > 5.
Numa primeira abordagem, prévia ao início do tratamento, todos os doentes preencheram a ESE e, após 3 a 6 meses de tratamento com APAP, preencheram 2 formulários da ESE. Foi solicitado que avaliassem o seu grau de sonolência após início de tratamento e que, retrospetivamente, completassem outra ESE tendo em consideração a sonolência inicial antes do tratamento com APAP.
Foi utilizado o programa SPSS 17,0 para a análise estatística.
ResultadosForam incluídos 66 doentes, com idade média de 53,3±10,3; 23-72 (x ± sd; min-max) anos, sendo que 88% era do sexo masculino (n=58) e 12% do sexo feminino (n=8). A média de IMC foi de 31,3±5; 22,4-52,9 kg/m2. A média do score da ESE basal (pré-tratamento) foi de 11,8±5,3; 0-23 e um número importante de doentes não apresentava queixas de sonolência, 32 doentes tinham um score na ESS <10. Cinquenta e nove doentes realizaram estudo cardiorrespiratório do sono e 7 realizaram polissonografia. Verificámos um IAH de 34,3±17,6; 11,5-85 eventos/h, uma SatO2 mínima de 77,2±7,6; 60-90mmHg e uma perceção de duração da doença de 7,4±5,6; 1-30 anos. Não houve correlação entre o score da ESE e estes parâmetros avaliados.
Todos os doentes cumpriram tratamento com APAP com uma pressão média de 8,6cmH2O. A média de uso diário do APAP foi de 5,9±1,3; 2,5-8,5 horas e 35 doentes (53%) apresentaram um uso diário ≥ 6h. O IAH residual foi de 2,9±1,3; 1-5 eventos/h. Após o tratamento com APAP, o score foi de 7,3±4,7; 0-21 (p <0,001 t-Test). A tabela 1 caracteriza os diferentes scores da ESE e do IAH.
A média de score da ESE retrospetiva foi 15,4±5,6; 2-25, com uma diferença média entre a pontuação inicial e retrospetiva de 3,55 (p <0,001 t-Test). Após início de terapêutica com APAP, verificou-se um score na ESE retrospetiva <10 em 12 pacientes. 23% dos doentes apresentaram um score inicial «normal» e, na avaliação retrospetiva, um score ‘«sonolento». Neste grupo de doentes verificou-se que os doentes mais jovens apresentaram um score da ESE retrospetiva mais elevada (p<0,001 t-Test). A figura 1 representa a diferença entre os scores da ESE basal, retrospetiva e pós-tratamento.
Não houve correlação significativa entre a diferença na pontuação ESS (basal - retrospetiva) com a média de tempo de uso diário (em horas) de APAP (p=0,066, Pearson), o IAH (p=0,315, Pearson), a SatO2 mínima registada (p=0,273, Pearson), a perceção de duração da doença (p=0,111, Pearson), a idade (p=0,103, Pearson) e o IMC (p=0,060, Pearson). Não houve diferença entre a ESE retrospetiva e a avaliada pós-tratamento nos doentes aderentes ou não (p=0,201 e p=0,069 t-Test).
A diferença nos scores da ESE, basal retrospetiva e basal pós-tratamento, demonstrou uma relação com significado estatístico (r=0,667, p<0,001, Pearson; fig. 2), mostrando que a magnitude da melhoria influi na perceção retrospetiva da ESE, quanto maior for a melhoria sintomática maior a pontuação atribuída na avaliação retrospetiva.
DiscussãoNeste estudo há um predomínio de doentes do sexo masculino e de meia-idade, resultados que estão de acordo com a prevalência de SAOS15.
À semelhança de outros estudos16,17, não houve correlação entre o score da ESE e o IAH inicial, acentuando a subjetividade dessa escala.
Muitos doentes não tinham noção do seu grau de sonolência antes de terem sido submetidos a tratamento com APAP: 48% (32/66) dos doentes apresentava uma ESE<10 antes do tratamento, um valor que diminui para 18% (12/66), quando avaliado o grau de sonolência retrospetivamente. A perceção da sonolência avaliada antes do tratamento APAP mudou significativamente após o tratamento. A média do score da ESE aumentou de forma significativa, de 11,8 para 15,4. Engleman et al.18 publicaram um estudo que apontava para uma alta prevalência de subvalorização dos sintomas antes do tratamento em doentes com SAOS: num total de 99 doentes, o score mediano para a sonolência aumentou de 12 (na avaliação inicial) para 14 (na avaliação retrospetiva). Estes autores não apresentaram qualquer justificação para este resultado.
Howard et al.19 e Golembieweski et al.20 foram os primeiros a descrever o conceito de response shift que é definido como uma mudança na perceção ou compreensão ao longo do tempo. É um processo adaptativo natural21 o facto de os doentes que apresentaram mudanças positivas no estado de saúde reforçarem a importância dos sintomas iniciais. Chin et al.22 tentaram avaliar o mecanismo da response shift na alteração da pontuação da ESE antes e após terapêutica com contínuos positive airway pressure (CPAP) em 31 doentes com o diagnóstico de SAOS. Avaliaram o IAH, a gravidade da dessaturação e o tempo de utilização de CPAP, mas não encontraram qualquer mecanismo para justificar esta mudança de resposta.
Neste estudo não encontramos correlação com significado estatístico entre as variáveis testadas e a diferença na pontuação da ESE, por isso não podemos concluir que esta diferença está relacionada com a idade, o IMC, o tempo de uso médio diário do APAP, o IAH, a SatO2 mínima atingida ou com o tempo de perceção da duração da doença. No entanto, o subgrupo dos doentes mais jovens apresentou um score da ESE na avaliação retrospetiva maior do que o resto do grupo. A forte correlação positiva entre a ESE basal retrospetiva e a basal pós-tratamento indica que, quanto maior for a melhoria da sonolência diurna após tratamento com APAP, melhor é a perceção da sonolência retrospetivamente. O conceito de response shift aplica-se aqui: só após tratamento eficaz é que os doentes são capazes de avaliar corretamente o seu grau de sonolência inicial.
A sonolência diurna em doentes com SAOS tem um interesse e uma importância cada vez maior para os Pneumologistas. Aceita-se que o diagnóstico de SAOS não deve depender unicamente do IAH e deve também ter-se em conta o impacto clínico associado à sonolência. A ESE é o melhor instrumento disponível para estimar a perceção de sonolência e tem sido largamente utilizada para avaliar a gravidade da sonolência e também para determinar quais os doentes com SAOS que devem ser tratados13. Apesar de ser uma amostra pequena, os nossos resultados mostram que os doentes subestimam a gravidade da sua sonolência e, por isso, parece ser arriscado utilizar este método subjetivo para a decisão terapêutica. É importante a utilização de uma medida mais objetiva para fundamentar a orientação terapêutica.
Como acontece com qualquer questionário, a ESE é limitada pela capacidade de o doente ler, compreender as questões e responder às perguntas honestamente. Os doentes também podem negar a sonolência devido ao estigma social e à possibilidade de perda de emprego. Talvez a escala deva ser preenchida pelo doente e pelo seu companheiro, com o objetivo de minimizar alguns destes problemas, assim como da subvalorização da sonolência.
A ESE também pode ser utilizada para avaliar a eficácia do tratamento com CPAP23 e no nosso estudo houve uma melhoria significativa da sonolência após o tratamento.
ConclusãoNa SAOS a sonolência diurna é um sintoma frequente, mas muitas vezes não é reconhecida, sendo a ESE o método mais amplamente utilizado para a avaliação subjetiva da gravidade da sonolência. Este trabalho mostra que o grau de sonolência determinado antes do tratamento era frequentemente subestimado nos doentes com SAOS. Houve uma alteração significativa dos scores da ESE determinados antes e depois do tratamento, ou seja, entre a avaliação basal e a retrospetiva. Há ainda uma considerável variação individual, não só na suscetibilidade, mas também na perceção da sonolência nos doentes com SAOS e não foi encontrada nenhuma causa para justificar essa variabilidade.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.