A obesidade é considerada um problema de saúde pública da atualidade. Devido ao facto de alterar a relação entre pulmões, parede torácica e diafragma, a obesidade tem sido relacionada com alterações da função pulmonar. Em Portugal, existem dados muito limitados entre a relação da obesidade com a função pulmonar.
O objetivo deste estudo foi avaliar as alterações da função respiratória nos doentes obesos mórbidos e o comportamento dos parâmetros obtidos nas provas funcionais respiratórias (PFR) no pré e pós cirurgia bariátrica.
Realizamos um estudo retrospectivo pré e pós cirurgia bariátrica em 36 doentes obesos mórbidos, com uma média de idades de 40,6 anos sendo 64% do sexo feminino e com um índice de massa corporal (IMC) médio de 49,7 kg/m2. Todos os doentes foram avaliados clínica e funcionalmente antes da cirurgia bariátrica e após estabilização do peso na sequência deste procedimento tendo-se realizado espirometria, volumes pulmonares, difusão do monóxido de carbono (DLCO), pressões máximas respiratórias e gasometria arterial. Previamente à cirurgia a maioria mostrava alterações nas PFR, 34 doentes apresentavam uma diminuição da capacidade residual funcional (CRF) dos quais 6 tinham síndrome restritiva. Apenas 2 doentes não expressavam qualquer alteração funcional ou gasométrica. Após a cirurgia bariátrica o IMC médio reduziu para 34kg/m2 e verificou-se uma melhoria significativa de quase todos os parâmetros funcionais havendo resolução dos padrões restritivos, mantendo, contudo, ainda 13 doentes a CRF diminuída.
Foi apenas encontrada correlação com significado estatístico entre a redução do IMC e o aumento da CRF (r = −0,371; p = 0,028).
Este estudo sugere uma relação entre obesidade e restrição pulmonar e aponta para um impacto positivo da cirurgia bariátrica nas PFR.
Obesity is considered one of the most serious public health problems of the modern world. Because it alters the relationship between the lungs, chest wall and diaphragm, it is to be expected that it impacts on the respiratory function. In Portugal, there is not much data about the relationship between obesity and pulmonary function.
The aim of this study was to characterize respiratory function in morbidly obese patients and to evaluate whether weight loss in patients submitted to bariatric surgery affects pulmonary function tests (PFT).
We conducted a retrospective study with 36 morbidly obese patients submitted to bariatric surgery, with a mean age of 40.6 years, 64% female and with a mean body mass index (BMI) of 49.7 kg/m2. All patients were clinical and functionally evaluated before surgery and after their weight had stabilized following surgery. They underwent a complete pulmonary function testing with spirometry, lung volumes, carbon monoxide diffusing capacity (DLCO), maximum respiratory pressures and arterial blood gases analysis. Prior to surgery almost all the patients had functional respiratory changes, 34 had a decrease in functional residual capacity (FRC) 6 of whom a restrictive syndrome. Only 2 patients did not show any functional or arterial blood gas change. After bariatric surgery, BMI decreased to 34 kg/m2 and there was a significant improvement in almost all functional parameters with resolution of restrictive disorders. Nevertheless, in 13 patients the FRC remained decreased.
After weight loss, the only correlation found was between reduction of BMI and increased FRC (r = −0.371; p = 0.028). This study suggests a relationship between obesity and pulmonary restriction and a positive impact of bariatric surgery in PFT.
A Organização Mundial da Saúde define a obesidade como uma doença em que o excesso de gordura corporal acumulada pode atingir graus capazes de afectar a saúde. A obesidade é hoje considerada uma epidemia global, que não afecta apenas os países desenvolvidos, mas também aqueles em vias de desenvolvimento1. Uma pessoa com um IMC igual ou superior a 30 kg/m2 é considerada obesa.
O excesso de peso pode causar alterações da função respiratória, podendo condicionar uma alteração ventilatória restritiva ou menos frequentemente uma alteração obstrutiva. No doente obeso há compromisso da mecânica respiratória provocando alterações da função pulmonar, com o aumento do trabalho respiratório e a redução dos volumes pulmonares2. Vários mecanismos foram sugeridos como possíveis efeitos da obesidade na função pulmonar. É sabido que a obesidade mórbida pode promover uma síndrome restritiva pela acumulação de gordura torácica e abdominal diminuindo os volumes pulmonares, o volume de reserva expiratório (VRE) e a CRF, devido à redução da parede torácica e complacência pulmonar e maior resistência respiratória. Promove anomalias na ventilação/perfusão condicionando hipoxemia de repouso e de decúbito dorsal provavelmente devido ao fechamento de pequenas vias aéreas observado neste tipo de doente. A obesidade provoca ainda uma maior resistência à passagem de ar devido ao estreitamento das vias aéreas3–10. Acredita-se também que o volume de sangue no pulmão leva à congestão, resultando no espessamento da parede das vias aéreas, diminuindo desta forma o calibre das vias aéreas11.
Por outro lado, é expectável que após a cirurgia haja uma redução significativa de peso condicionando uma melhoria ou mesmo resolução das alterações da função respiratória. Assim, devido à necessidade de uma intervenção mais eficaz no seguimento clínico dos obesos mórbidos, a indicação das operações bariátricas têm vindo a aumentar12.
ObjetivoAvaliar as alterações provocadas pela obesidade mórbida na função pulmonar e o comportamento dos parâmetros após cirurgia bariátrica obtidos nas PFR no pré e pós cirurgia.
Material e métodosEstudo comparativo e retrospetivo que inclui uma coorte de doentes submetidos a cirurgia bariátrica, desde 1998 a 2008, que foram referenciados para avaliação pré-operatória da função pulmonar de rotina.
Para além de uma avaliação clínica e imagiológica com Rx tórax os doentes efetuaram: espirometria utilizando o equipamento SensorMedics®; volumes pulmonares com um pletismografo Jaeger®; difusão do monóxido de carbono (DLCO) pelo método single breath; pressões máximas respiratórias usando um manómetro Sibelmed®; e gasometria arterial. Os testes foram realizados de acordo com as normas da American Thoracic Society e da European Respiratory Society. Após cirurgia e 3 meses de peso estabilizado foram novamente avaliados e submetidos a novo estudo da função respiratória. Foram incluídos doentes com obesidade mórbida (IMC ≥ 40 kg/m2) que apresentaram insucesso na perda ponderal com outras medidas terapêuticas, nomeadamente exercício físico e dieta, e excluídos doentes com complicações respiratórias no pós-operatório e com doença pulmonar prévia.
Os resultados são expressos em percentagem do previsto.
Para tratamento estatístico foi usado o programa SPSS 17.0.
ResultadosForam incluídos 36 doentes: idade média de 40,6±7,2; 24-60 (x±dp;min-max) anos dos quais 23 (64%) eram do sexo feminino; A média de IMC pré cirurgia foi de 49,7±8,2; 40-69kg/m2, apresentando 21 doentes um IMC entre 40,0 e 49,9, 8 doentes entre 50,0 e 59,9 e 7 com IMC ≥60 kg/m2. Na avaliação pré cirúrgica apenas 2 doentes apresentavam função normal e 6 tinham padrão restritivo apresentando estes obesos mórbidos uma capacidade pulmonar total (CPT) média de 71,3% do previsto. A alteração mais frequente da função respiratória foi a diminuição da CRF em 34 doentes, com uma média de 56,5% em relação ao previsto. Relativamente à gasometria arterial verificou-se uma diminuição da pressão arterial de oxigénio (PaO2) e um aumento da pressão arterial de dióxido de carbono (PaCO2) simultaneamente em 5 doentes, apresentado estes obesos uma média de PaO2 de 67,3 e PaCO2 de 47,7mmHg. Previamente à cirurgia, observou-se uma correlação com significado estatístico entre o IMC e a CRF (r = −0,525 p = 0,001), a CRF e a PaCO2 (r = −0,346 p = 0,039), e a CPT com a PaO2 e a PaCO2 (r = 0,386 p = 0,020 e r = −0,524 p = 0,001, respetivamente). Não se demonstrou nenhuma correlação entre outros parâmetros funcionais respiratórios, gasométricos e o IMC. Não se verificou nenhuma diferença na idade ou IMC no grupo de obesos que apresentava padrão restritivo relativamente aos obesos sem padrão restritivo.
Todos os obesos mórbidos perderam peso, IMC pós cirurgia de 34 ± 6,4; 23-51kg/m2, correspondendo a uma diferença média de 15,7kg/m2 (p<0,001) o equivalente a uma redução de peso de 31,6%. Foram submetidos a cirurgia de desvio biliopancreático 15 doentes, 10 a bypass gástrico, 8 a gastrectomia vertical e 3 a colocação de banda gástrica. Na avaliação pós cirúrgica e depois da estabilização do peso houve diferença estatisticamente significativa entre a média da capacidade vital forçada (CVF), volume expiratório máximo no 1.° segundo (VEMS), CPT, CRF, PaO2 e PaCO2, não havendo significado estatístico entre as diferenças das médias do volume residual (VR), DLCO, pressão inspiratória máxima (PIM) e pressão expiratória máxima (PEM). Assim, houve uma melhoria média de 13,4% de CVF, 14,8% de VEMS, 11,1% de CPT e 35,5% de CRF. Em relação à CRF verifica-se que o seu decréscimo e posterior aumento, de 56,5 para 87,3% deve-se fundamentalmente ao VRE uma vez que o VR não sofre alterações no pré e pós cirurgia. Na figura 1 estão representadas as variações das capacidades e volumes pulmonares pré e pós cirurgia em comparação com o prognosticado. Após a cirurgia e perda de peso nem todos os doentes ficaram com provas normais, apesar da resolução do padrão restritivo em todos eles manteve-se a diminuição da CRF em 13 doentes, o que corresponde aos doentes com maior IMC inicial e com menor diferença na perda de peso (tabela 1). Houve também uma diferença significativa nos parâmetros gasométricos com resolução das alterações de hipoxemia e hipercápnia em 4 doentes. As principais alterações nos volumes estático e dinâmico e na gasometria arterial são descritos na tabela 2.
Testes de função respiratória
Média ± dp pré-cirurgia | Média ± dp pós-cirurgia | t-student | |
---|---|---|---|
CVF (%) | 95,7 ± 14,6 | 110,5 ±16,7 | p < 0,001 |
VEMS (%) | 92,5 ± 13,7 | 108,6 ± 15,6 | p < 0,001 |
VEMS/CVF (%) | 97,0 ± 5,6 | 98,6 ± 5,1 | NS |
CPT (%) | 86,9 ± 12,1 | 97,8 ± 12,6 | p < 0,001 |
CRF (%) | 56,5 ± 11,0 | 87,3 ± 25,9 | p < 0,001 |
VR (%) | 78,7 ± 16,8 | 83,5 ± 17,0 | NS |
DLCO/VA (%) | 94,0 ± 13,5 | 93,8 ± 12,1 | NS |
PIM (cmH2O) | 8,3 ± 2,4 | 9,5 ± 2,2 | NS |
PEM (cmH2O) | 15,4 ± 4,8 | 14,7 ± 4,0 | NS |
PaO2 (mmHg) | 83,8 ± 12,7 | 92,2 ± 11,2 | p < 0,001 |
PaCO2 (mmHg) | 39,9 ± 4,2 | 38,1 ± 4,0 | p = 0,016 |
Foi encontrada correlação negativa entre a redução do IMC e o aumento da CRF (r = −0,371, p = 0,028; fig. 2) mostrando assim que quanto menor for a perda de peso menor é a variação da CRF. Não houve correlação com significado estatístico entre a diferença de IMC e a variação de outros parâmetros funcionais respiratórios, como o CVF, VEMS e CPT, ou dos parâmetros gasométricos.
DiscussãoNos doentes incluídos neste trabalho existiu um nítido predomínio de sexo feminino, um achado quase universal em relação à prevalência da obesidade mórbida13.
Houve uma redução significativa do IMC médio de 49,7 para 34kg/m2 sendo esta redução (média de 31,6%) ligeiramente superior ao que é relatado na literatura (25,9%)14.
Vários estudos demonstraram uma associação entre obesidade e alterações na função pulmonar5–10. Na população portuguesa não há nenhum estudo publicado nesta área, com uma avaliação funcional e gasométrica dos doentes obesos mórbidos no pré e pós cirurgia bariátrica. Rubistein et al.10 realizou um estudo com 293 doentes divididos em dois grupos, obesos e não obesos, e verificou reduções significativas da CRF, CPT e VRE no grupo dos obesos e valores normais nos não obesos.
Neste trabalho em que foi avaliada uma população de obesos mórbidos ficou claro que o grau de obesidade exerceu influência nas alterações dos volumes e das capacidades pulmonares em particular com a diminuição do VEMS, CVF, CPT e do CRF à custa do VRE. Praticamente todos os doentes apresentavam uma redução do CRF, embora um padrão restritivo (CPT < 80%) só tenha sido encontrado em 6 doentes. Contudo, estes doentes não apresentavam IMC superior aos doentes sem padrão restritivo o que corresponderá, uma vez que foram excluídos doentes com outra patologia respiratória, a diferente distribuição do depósito de gordura com a consequente diferença na função muscular respiratória.
A redução do VRE e da CRF nos doentes obesos mórbidos é devida às alterações da mecânica ventilatória provocadas pela deposição de gordura a nível abdominal e torácica, que condicionam uma diminuição da compliance pulmonar e um aumento do trabalho respiratório e da resistência pulmonar, que irão condicionar uma disfunção dos músculos respiratórios. Também se verificaram alterações nas trocas gasosas com o aumento do PaCO2 e a diminuição da PaO2, o que se pode justificar pela hipoventilação e pelas alterações de ventilação/perfusão, ou seja, áreas do pulmão, normalmente as zonas inferiores, que estão a ser bem perfundidas mas mal ventiladas devido a atelectasias observadas na obesidade.
Observou-se uma melhoria de todos os parâmetros respiratórios em pacientes submetidos a cirurgia bariátrica com um aumento significativo da CRF, CPT, VEMS, CVF e PaO2 e decréscimo também significativo da PaCO2. A média de CRF foi 56,5% na avaliação pré-cirurgica e 87,3% depois a cirurgia, com intervenção exclusiva do VRE, confirmando-se assim uma melhoria significativa deste parâmetro após a perda de peso.
A melhoria da CRF aqui observada correlacionou-se com a diminuição do IMC, enfatizando o facto de os doentes obesos, e em particular os obesos mórbidos, terem importantes alterações nos volumes pulmonares e que a perda de peso melhora francamente a função pulmonar.
Os nossos resultados vêm ao encontro de outros estudos, como o de Thomas et al.6 e o de Xavier et al.15 em que apesar de apresentarem uma amostra menor, 29 e 20 doentes respetivamente, também verificaram uma melhoria importante e com significado estatístico nas PFR e na gasometria pré e pós cirurgia bariátrica.
Uma vez que nenhum dos 36 doentes avaliados tinha doença pulmonar prévia, atribuem-se as alterações nos volumes pulmonares e nos parâmetros gasométricos exclusivamente à obesidade.
As limitações deste estudo são as inerentes aos estudos retrospetivos, sendo o tipo de obesidade que condiciona determinada distribuição de massa gorda, um fator importante para melhor caracterização das PFR nos doentes obesos.
ConclusõesEstes resultados apontam para o envolvimento da obesidade mórbida na função pulmonar tendo sido a diminuição da CRF, associada ou não ao um padrão restritivo, o achado mais frequentemente identificado.
Existiu uma perda de peso significativa com melhoria das PFR e das trocas gasosas. Verificou-se uma correlação entre o aumento CRF e a diminuição de IMC não tendo havido correlação entre outras variáveis da função pulmonar e o IMC. Estes resultados mostram que a obesidade é a causa das alterações pulmonares e demonstram o impacto positivo da cirurgia bariátrica na função pulmonar.
Assim, os doentes obesos mórbidos devem ser incentivados a perder peso, pois para além dos benefícios relacionados com as outras doenças associadas, também melhora a função respiratória.
Conhecendo-se a dificuldade em conseguir reduções significativas de peso com medidas conservadoras nos doentes com obesidade mórbida, a melhoria funcional respiratória significativa encontrada neste estudo após a cirurgia bariátrica, reforça também deste ponto de vista esta indicação terapêutica na obesidade mórbida.
Conflito de interessesOs autores declaram não haver conflito de interesses.